Entrevista com a pianista Maria Teresa Madeira (parte 1)

No dia 21 de março, a pianista Maria Teresa Madeira concedeu uma longa entrevista ao IPB, que estamos trazendo a público pela primeira vez agora.

A primeira parte da entrevista foi realizada no estúdio da pianista (Laranjeira Records, Rio de Janeiro), e os temas abordados foram o começo de sua carreira, sua época de estudante na UFRJ, os vários professores que teve, o repertório que estudou, seu mestrado nos Estados Unidos, sua dedicação à música brasileira, e seu projeto monumental de gravar a obra integral de Ernesto Nazareth. Confiram! (Leia a parte 2 da entrevista aqui)

Acesse aqui a discografia de Maria Teresa Madeira.

Baixe aqui a listagem de concertos (concertografia) detalhada de Maria Teresa Madeira entre 1979 e 2009. 

Alexandre Dias - Maria Teresa, eu gostaria de começar falando dos seus primórdios, como que a música realmente começou na sua vida. Nós sabemos que sua mãe tinha uma escola de música, então imagino que você tinha acesso ao piano desde muito cedo. Como foi esse princípio, você começou tirando músicas de ouvido, imitando? 

Maria Teresa Madeira - Olha, a minha mãe tinha uma escola que era assim: os fundos da escola se comunicavam com os fundos da minha casa, então a gente tinha meio que um acesso livre pra lá e pra cá. E eu comecei a fazer aulas de piano cedo, mas antes disso tem uma história que a minha mãe contava, que os meus tios também e as outras pessoas sempre confirmam isso: eu tinha quase dois anos, entre um ano e meio e um pouco mais, e eu sentei no piano e comecei a tocar uma música, que era uma música que estava em voga no carnaval da época, que era aquela "lá em casa tem um bigorrilho, bigorrilho fazia mingau" ["Bigorrilho", de Paquito, Romeu Gentil e Sebastião Gomes], e eu sentei ao piano, e minha mãe disse que ficou de queixo caído porque eu toquei com as duas mãos. Ela dizia que ficou “passada” de ver aquilo - minha mãe era uma pessoa da música, mas ela não era uma pianista de carreira, ela era uma professora, e ela sempre falou "Ah minha filha, eu sempre precisei estudar muito para poder ter um trabalho feito, eu ficava nervosa na hora de tocar..."


Maria Teresa Madeira criança

AD - Qual era o nome completo da sua mãe?

MTM - Teresa da Graça Madeira Pereira. Ela sempre comentava comigo "Ah, eu não tenho a facilidade que você tem. Sempre tive que me preparar mais porque não era uma coisa tão natural tocar".


Teresa da Graça Madeira Pereira, mãe de Maria Teresa

AD - Parte dessa facilidade vem do seu ouvido absoluto, não é? Quando você percebeu que tinha ouvido absoluto? Ainda criança?

MTM - Na verdade, eu fui conhecer esse termo depois, porque para mim era tão natural.

AD - As notas sempre “acenderam” para você.

MTM - Sempre. Depois que eu comecei a fazer a graduação é que eu vi que nem todo mundo tinha. Como os maiores colegas que eu tinha na adolescência não eram do meio musical, na escola... Quer dizer, eu fui a única da minha escola que fez música, mas eu convivia com as pessoas dentro da academia da minha mãe. Mas eu sempre ficava pensando "Será que eu consigo tocar isso tudo porque eu sempre ouvi?". Todo mundo falava "Nossa, a filha da Dona Teresa!". Só que quando eu saí de Nova Iguaçu para fazer a graduação, eu vi que tinha zilhões de pessoas tocando piano.

AD - Você nasceu em Nova Iguaçu?

MTM - Eu sou de Nova Iguaçu, mas minha mãe veio pra Lapa pra me ter na Terceira Ordem do Carmo, ali na rua do Riachuelo. Eu nasci na Lapa e voltei pra Nova Iguaçu. E inclusive eu me chamo Maria porque, segundo minha mãe, o relógio da Mesbla estava tocando às 6 horas da tarde.

AD - Que é a hora da Ave Maria.

MTM – É, então me chamo Maria por causa disso.

AD - Então tirar as coisas de ouvido fazia parte da sua vida naturalmente.

MTM - Sim, sempre foi.

AD - E em algum momento depois você aprendeu a ler partitura, e ficou mais focada na música escrita.

MTM - É, porque quando comecei a fazer aula de piano, tinha uma professora, D. Odette Gomes de Souza....

AD - Foi sua primeira professora?

MTM Foi. Ela era uma professora lá da academia da minha mãe. Eu levava [o livro de] Anna Magdalena Bach debaixo do braço, mas na verdade eu tocava tudo aquilo de ouvido. Eu conhecia por causa dos alunos tocando. Eu convivia ali com a escola, e eu ouvia um Minueto, aquele Prelúdio em dó menor, tudo isso eu tocava de ouvido.

AD - Isso é uma história que se repete em muitos pianistas: eles vão tirando de ouvido, muitas vezes ouvindo os irmãos praticarem, mas você é filha única.

MTM - Pois é, eu aprendi com os alunos que tocavam. Como não era nada acusticamente vedado, eu ouvia lá de casa. Eu ia lá para a aula, e até hoje eu tenho dúvidas, mas eu acho que a D. Odette não sabia que eu não lia.

AD - Então você ainda não lia partituras nessa época.

MTM - Não, e minha mãe nunca me deu aula, porque ela falava que nunca iria funcionar (risos).

AD - Depois da D. Odette, com quem você teve aula?

MTM - Depois eu tive aula com a dona Sophia Vieira de Freitas. Foi assim: eu fiz o curso técnico na escola da minha mãe com a Dona Odette. Só que quando eu comecei a aprender harmonia com a dona Nair Brochado, que foi uma grande professora - o que eu sei de harmonia até hoje eu dou graças a ela.

AD - De lá também?

MTM - De lá também. Ela era do Conservatório [Brasileiro de Música] e ela dava aula na escola da minha mãe. E eu aprendi baixo dado, harmonia, tanto que quando eu fui fazer a graduação, eu me lembrava exatamente dos ensinamentos dela.

AD - E em que momento você passou a ter aulas com a Anna Carolina Pereira da Silva?

MTM - A Anna Carolina foi quando eu comecei na graduação, em 78.

AD - Então antes da graduação você teve duas professoras de piano: Odette e Sophia.

MTM - Sim, a D. Sophia Vieira de Freitas era uma professora do Conservatório, que na verdade minha mãe achou que eu devia fazer aula com alguém fora da academia. Então eu ia pra Tijuca ter aula com ela, na sua casa, com 14, 15 anos.

AD - E nessa época, que tipo de repertório você estudava? Eram peças já mais avançadas ou eram coisas mais intermediárias?

MTM - Eu me lembro que eu toquei o Estudo Revolucionário com 15, 16 anos. Comecei a estudar o Bach [invenções] a três vozes, fazendo parte do estudo do curso técnico. E aí quando eu comecei a graduação, eu comecei a entrar nos concursos de piano, e comecei a ouvir - porque eu fazia dança também - e comecei a ouvir umas coisas, e ouvi A Cor do Som tocando Nazareth, o Armandinho... Aquilo me chamou a atenção. Depois eu comecei a ouvir uns discos do Arthur Moreira Lima, eu vi os programas que a Eudóxia fazia no “8 ou 800”, que era um programa de televisão [apresentado por Paulo Gracindo].

AD - Isso foi em 1976.

MTM - É, e eu me lembro que fiquei com muita pena porque ela [Eudóxia] tocava sempre no final dos programas alguma coisa, e justamente quando chegou na final, cuja pergunta foi o nome das valsas de Nazareth que tinham nome de mulher, ficou faltando, e eu morri de pena, e minha mãe falou "Ai meu Deus, que pena". Eu me lembro disso, sabe?

AD - Então você estava lá torcendo pela Eudóxia.

MTM - Estava. Quer dizer, eu nunca pensei que fosse conhecê-la pessoalmente. É um negócio que marcou muito. 

AD - Uma vez você comentou que as aulas de dança te influenciaram muito na parte do piano, te ajudaram de alguma maneira. Como é que foi isso?

MTM - Olha, a gente lá na academia tinha a pianista que tocava nas aulas de balé, e eu achava aquilo magnífico, porque tinha uma parte de improvisação, e você tinha que fazer os compassos simétricos, geralmente em 4, 8, já que era aula de balé clássico, e aí acabou sendo meu primeiro emprego - porque minha mãe falou "Eu vou ficar sem a Laila", que era a pianista Laila Hara, que hoje em dia é advogada. E ela falou "Você tenta", e aí eu comecei a tentar tocar e eu vi que conseguia, porque eu tocava tudo de ouvido e também tinha umas coisas pra ler, mas eu dava meu jeito.

AD - Mas primeiro você fazia aula de balé mesmo. Depois você passou a correpetidora.

MTM - Sim, então eu fazia assim: eu tocava nas aulas antes da que eu fazia, já vestida com a roupa da aula, e quando chegava a minha aula era com fita.

AD - Certo, e as aulas de balé em si, a parte de movimento. Isso teve alguma influência?

MTM - Muita.

AD - Como? Pode explicar melhor?

MTM - Postural, depois de muitos anos, é quase como se você aprendesse uma outra estrutura no seu corpo, uma educação corporal muito rígida, por sinal, pelo balé clássico. Isso foi uma coisa. E eu acho que a questão da respiração, de você frasear fisicamente o que a música te propõe, ou a música acompanhar o que você propõe a ela. Então é uma conversa, eu acho que é meio uma música de câmara, o bailarino e o pianista. Eu acho que tem que ter um pouco de generosidade. Um pouco não, muita, pra você poder se entender. A música com a dança e a dança com a música. Você tem que ter uma certa adaptação ali porque, assim como quando você toca, quando você dança, você não consegue fazer exatamente a mesma coisa. Você treina talvez uma finalização igual, uma impulsão, mas assim, nunca é exatamente a mesma coisa, sempre tem um acabamento, alguma coisa. E a música é a mesma coisa, desde que você faça ao vivo. E isso me ensinou muito.

AD - E depois você decidiu fazer vestibular pra música e passou para a UFRJ.

MTM - Foi.

AD - Você já estava decidida a fazer música desde uns anos antes ou foi algo mais em cima da hora?

MTM - Olha, eu pensei em fazer arquitetura, porque duas amigas que eram bem próximas a mim na escola resolveram fazer. E na época em que eu fui para o Ensino Médio, que antigamente era o curso científico, e depois passou a ser o profissionalizante, tinha a opção de ir pra secretariado, curso normal, eletrotécnico ou de biologia. Na escola em que eu estudava, não tinha o eletrotécnico, e todos os meus amigos foram para a outra escola que tinha. E eu falei pra minha mãe que queria fazer arquitetura, que queria mudar de escola na verdade (risos). E colou. Eu mudei de escola e fiz o eletrotécnico. E eu até gostei porque eu tinha umas coisas de desenho. [Mas] na hora em que eu precisei fazer um estágio eu vi: "Hm, não é isso que eu quero". E quando eu tinha pensado em fazer arquitetura, eu me lembro quando meus pais me chamaram pra conversar, e eles falaram "Você só fala em música a vida inteira e agora você quer fazer arquitetura? Não estamos entendendo".

AD - E você continuou tocando nesse período, estudando em casa?

MTM - Sempre tocando. Aí eu falei “É, realmente...". Porque sempre os pais fazem o contrário, não é? (risos). Os meus foram completamente fora. Eles falaram "Não estamos entendo por que você vai fazer arquitetura agora, sendo que você nunca falou nisso". 

AD - Você tinha um certo receio de que a música pudesse não te dar o retorno esperado, ou mesmo algo em relação às expectativas da sociedade?

MTM - Não, isso eu nunca pensei. Eu pensava na coisa de adolescente mesmo, de bando, sabe? Aquela coisa de bando. Meus amigos vão fazer, ah, eu vou fazer. Até porque eu sou filha única, então a gente quer congregar, mas eu vi que era isso mesmo e eu fiz e deu certo.

AD - Depois você entrou para a Escola de Música da UFRJ, e lá você teve vários professores. Pode nos falar como foi esta sequência?

MTM - Na verdade eu acho que, perto de outras pessoas que estudaram piano, eu tive até poucos professores de verdade. Eu tive a dona Odette, depois dona Sophia, depois D. Anna Carolina. E naquela época a graduação eram 5 anos, então eu fiz quase 4 anos com a D. Anna Carolina, e no final eu fiz uma audição para fazer as masterclasses do Jacques Klein. Eu passei e fiz - estudei sonata da Mozart, depois estudei outras coisas - e o Jacques foi convidado para dar aula na Escola de Música [da UFRJ], só que ele não tinha formação, ele não tinha certificado. Mas convidaram ele para ser professor lá e ele falou: "Eu vou ter dois alunos, você e um outro", e ele ia me dar aula lá. Na época ele era diretor da Sala Cecilia Meireles. 

Só que, por questões burocráticas, um dia ele me chamou na Sala e ele falou "Olha, eu não vou poder dar aula na graduação, eu vou dar aula só na pós, como convidado". Então como eu tinha tido um contato com [Heitor] Alimonda - porque o Alimonda que me ouviu para me aprovar, para eu tocar pro Jacques - eu quis ter aula com o Alimonda. Então, no final da graduação, eu tive aula com o Alimonda. Eu já sabia do Miguel Proença, do carinho que ele tinha por música brasileira, das gravações dele...

AD - Ele era professor lá?

MTM - Não. Eu tive aula particular com o Miguel, quando eu acabei a graduação. Só que às vezes o Alimonda me ouvia também, eu tinha os dois, e os dois sabiam que eles ouviam [sabiam a respeito um do outro]. E os dois foram assim maravilhosos comigo. O Miguel me deu muita força com música brasileira e o Alimonda também.

AD - Eu queria saber um pouco mais desse repertório que você estudava. Nos quatro primeiros anos da graduação, que tipo de repertório você trabalhou com a D. Anna Carolina?

MTM - Estudo de Moszkowski, Estudo de Chopin, 2º Scherzo, Prelúdio de fuga [de Bach], Suíte francesa...

AD - Alban Berg veio por aí também?

MTM - Alban Berg veio no mestrado. Mostrei os Nazareths pra ela, que eu já me interessava na época.

AD - Você começou a estudar Nazareth por conta própria então?

MTM - É, quando eu comecei a ouvir. Eu fiz parte de um concurso para jovens instrumentistas, e eu vi a Sarah Higino tocando Digo. Eu falei "Ah! Eu quero tocar isso".

AD - Então o [tango brasileiro] Digo foi uma das suas primeiras referências suas de Nazareth. 

MTM - Foi, o Digo. 


Cabeçalho do tango característico Digo, de Ernesto Nazareth

AD - Mas teve também o Brejeiro pelA Cor do Som?

MTM - Sim, e Confidências pelo Arthur [Moreira Lima], que eu comprei o disco. Eu dancei uma coreografia que tinha Nazareth, então foi todo um conjunto de Nazareths.

AD - Era alguma música específica de Nazareth que você dançou?

MTM - Confidências, eu acho, o Brejeiro também. E a Anna Carolina me ouviu tocando os Nazareths.

AD - Então você estava estudando um repertório mais tradicional com ela.

MTM - Sim, e que foi uma base fantástica. Bach-Siloti [Prelúdio para órgão em sol menor].

AD - Algum concerto?

MTM - Sim. O concerto de Mendelssohn [No.1] e o 3º de Beethoven eu trabalhei.

AD - Acho que você nunca tocou isso em público.

MTM - Não. E aí eu trabalhei a Sonata de Mozart em si bemol, com o Jacques, e uma Sonata de Beethoven, a Op.2 No.1, em fá menor. E foi uma grande escola.

AD - O Jacques era um pianista incrível. Como era ele como professor? Ele sentava ao piano e demonstrava? Falava de coisas genéricas ou específicas?

MTM - A lembrança que eu tenho é que ele tocava muito pouco nas aulas. Ele falava muito sobre articulação [de som] - o que junta e o que separa. E era interessante porque comigo ele praticamente não mexeu tecnicamente, ele só burilou. Tanto que o Alimonda que ouvia quem é que podia fazer a masterclass com ele. Por isso que o Alimonda me aceitou depois.

AD - Então foram pouquíssimas aulas com o Jacques.

MTM - Foram acho que umas 4 ou 6, mas foram aulas longas e foram aulas com muito detalhe. E ele era o tipo do professor que queria ver ali se eu conseguia fazer o resultado sonoro, para poder ir casa sabendo como aquilo soava. Isso eu aprendi com ele. “Faz um pouquinho, nem que seja um pouquinho...”.

AD - E eram masterclasses abertas, os outros alunos assistiam, ou eram particulares?

MTM - Essas aulas foram particulares.

AD - Vamos falar do Heitor Alimonda. Também grande pianista, que aliás estudou na Alemanha, e era um especialista em música brasileira, tocava sonatas de Santoro...

MTM - Exatamente.

AD - Teve algum contato específico de música brasileira com ele? O que você estudava com ele?

MTM - Teve. Eu estudei com ele a Toccata do Santoro. Eu mostrei para ele, e ele falou assim "Nossa, engraçado, eu não faço nada disso, mas eu gostei do jeito que você faz". Eu achei maravilhoso aquilo. O Alimonda era muito sisudo, na época em que o conheci. Ele ia dar aula de terno, muito sisudo. Depois ele, por várias mudanças na vida, ele mudou, se abriu mais. Inclusive foi engraçado porque ele soube que eu queria estudar com o Jacques, e o Jacques me avisou que não iria dar aula para a graduação. Então eu procurei o Alimonda, e senti que ele ficou meio assim. Na época ele me viu passar no corredor, um dia na Escola de Música, e aí ele falou: "Me diz uma coisa. Você vai querer estudar comigo?" Eu falei "Professor, eu realmente procurei o Jacques Klein, mas ele foi impossibilitado, então eu queria saber se o senhor tem um horário para mim". Aí ele demorou um pouco para me responder, uns dias. Um dia eu passei e ele falou algo assim: "Terça-feira, 8h! Tá bom?". E eu falei "Tá ótimo, professor!" e tivemos uma convivência maravilhosa. Depois que eu me formei na Escola de Música, ele me recebia na casa dele e nunca me cobrou um centavo pelas aulas.

AD - Você continuou aluna dele?

MTM - Continuei, e ele sabendo que o Miguel também me ouvia.

AD - Teve sobreposições então, claro.

MTM - Sim, poucas.

AD - Outras músicas que você trabalhou com o Alimonda, lembra de alguma coisa?

MTM - Ah, eu trabalhei muito as Variações Sérias, do Mendelssohn, isso eu me lembro perfeitamente. Rhapsody in Blue do Gershwin, trabalhei direto com ele. Ganhei um concurso para tocar graças a ele.

AD - Que concurso?

MTM - Dentro da Escola de Música, para ser solista. E por um acaso assim muito divino, a primeira vez em que eu toquei na sala Cecília Meireles, foi assim: ele me falou: "A banda dos bombeiros vai fazer um concerto na Sala e precisa de alguém que toque a Rhapsody in Blue, eu dei o seu nome". Eu devia ter o que, 19, 20 anos.

AD - Mas você já tinha tocado na Escola de Música antes com a orquestra?

MTM - Eu tinha passado no concurso, mas eu não tinha tocado.

AD - Então sua estreia de concerto foi com Rhapsody in Blue.

MTM - Foi. Na Sala Cecília Meireles, um concerto profissional, estava lotada a sala. Foi 1980 se não me engano, 81, por aí. Sabe aquelas coisas que são pra você? Ele falou "a pianista teve um problema (que eu não sei quem foi) e não vai poder tocar, aí eu falei que você tocaria".

AD - Foi gravado?

MTM - Foi. Até pouco tempo eu tinha uma gravação. 

AD - Deve existir no acervo deles.

MTM - Talvez.

AD - Então vamos falar do Miguel Proença. Você teve aulas particulares com o Miguel nessa época. O Miguel também um grande especialista em música brasileira.

MTM - Maravilhoso.

AD - O que você trabalhava com ele?

MTM - Miguel, eu me lembro perfeitamente que ele falou assim... eu ia fazer um concurso de piano e ele falou assim "Essa peça aqui não dá. Estuda essa 3ª Sonata de Prokofiev. Lê isso pra próxima semana".

AD - Essa peça “que não dava”, você se lembra qual era?

MTM - Ah, eu não lembro. Porque ele falou "a gente tem que ter uma peça moderna de peso, não pode ser um contemporâneo brasileiro". Eu tocava algumas coisas, mas ele falou "tem que ser um nome internacional". Aí ele falou: "Estuda, lê a 3ª Sonata de Prokofiev. Semana que vem você me traz". Eu cheguei tocando aos trancos e barrancos e li. Aí ele falou milhões de coisas - as aulas deles eram horas seguidas - e disse: "semana que vem eu quero ela de cor" (risos). Aí eu levei. E quando eu fiz um concurso de música brasileira na Funarte, eu tinha uns prelúdios do Santoro e a Mini-suíte das Três Maquinas [de Aylton Escobar] e uma outra obra. Levei para ele ouvir, e ele falou: "Você tem que ter um negócio mais brilhante. Estuda essa Toccata aqui do Santoro". Foi ele que me mandou estudar, depois eu trabalhei com o Alimonda também, porque o Alimonda tinha tocado. Acho que eu estudei em uma semana também a Toccata do Santoro, pra poder botar no programa.

AD - Foi para que programa especificamente?

MTM - Para o 1º Concurso de jovens intérpretes de música brasileira.

AD - Isso não é aquele da LP que saiu na Funarte, certo?

MTM - Antes. Eu tirei segundou lugar. Eu empatei com um pianista que até já faleceu, Sérgio..., que era professor da Escola de Música, e morreu de repente. E eu fiquei tão nervosa que eu não fui no dia do resultado. Quando eu cheguei na sala estavam falando meu nome, que eu tinha tirado segundo. Eu toquei acho que Fructuoso Vianna.

AD - O que do Fructuoso Vianna? Dança de Negros?

MTM - Eu também tinha feito um concurso em que toquei vários Fructuoso Vianna. Toquei a Dança de Negros, o Corta-jaca dele, a Serenata espanhola, Petit Robinson, toquei muita coisa.

AD - Era um concurso específico de Fructuoso Vianna?

MTM - Era. Conheci a filha dele, inclusive, a Guilhermina.

AD - Certo. E Sergei Dorensky? Como você chegou a ele?

MTM - O Sergei deu uma masterclass na Escola de Música, e como eu estava tocando a 3ª [Sonata] de Prokofiev, o Alimonda falou "toca pra ele". 

AD - Então foi apenas uma aula.

MTM - Foi. Na verdade eu acho que ele deu três aulas de masterclass, mas eu toquei em uma.

AD - Vocês se comunicaram em inglês?

MTM - Sim. Eu sentei para tocar aquela sonata - erao Auditório da Congregação da Escola de Música,  lotado - e era muito engraçado, porque ele era grandão, e eu tocando aquelas partes mais complicadas, e ele no meu ombro assim "Mais!", e eu com esses bracinhos minúsculos (risos). Ele tentando me mostrar os apoios e a força motriz daquilo ali, como é que tinha que ser.

AD - Ele era mais gestual então.

MTM - Sim, mas foi muito interessante pegar a fonte das informações dele.

AD - Depois você se graduou. Teve mais algum professor nessa época que tenha feito parte da sua formação?

MTM - Antes de eu ir para os Estados Unidos, foi quando eu tive aula com a Myrian [Dauelsberg]. A masterclass com a Carmen Prazzini, foi de música de câmera, em que eu toquei todo o repertório de flauta e piano com Fernando Brandão. Ela deu uma masterclass na Pro Arte nos anos 80.

AD - De música estrangeira ou brasileira?

MTM - A gente tocou Variações de Schubert pra flauta e piano, Sonata de Prokofiev a gente trabalhou com ela e tocamos no recital. Uma pianista maravilhosa e uma professora fantástica. Carmen Prazzini

AD - E a Myrian Dauelsberg?

MTM - A Myrian, eu tinha vários amigos que tinham aula com ela, e como eu estava pleiteando ir para fora e fazer muita música de câmara, estava trabalhando com isso, eu resolvi procurá-la e tocar para ela. Fui até a casa dela, ela me recebeu, e foi muito generosa. Na época, ela dava aula pro Giulio Draghi, e pro Flávio Augusto também, então a gente falava que era um internato, porque quando a gente ia para lá, era o dia inteiro.

AD - E um ficava ouvindo o outro.

MTM - Às vezes sim, às vezes não. Eu trabalhei com ela todo o repertório que eu fazia: o Bach [Suíte inglesa nº 2], trabalhei Sonata de Mozart, trabalhei tudo que eu fazia. Música brasileira ela também ouvia e sugeria repertório. Enfim, foi o que ela sempre falou nas aulas: "Quatro ouvidos bons são melhores que dois bons".

AD - Professor e aluno.

MTM - É. Tanto faz se for professor, ou se for outro, mas se forem quatro ouvidos.

AD - Foram poucas aulas com a Myrian?

MTM - Foi ao longo talvez de uns 3, 4 meses, mas eram aulas mais espaçadas porque era impossível ter aula com mais frequência.

AD - Isso antes de você se formar?

MTM - Não, antes de eu viajar. Eu me formei em 82. Com a Myrian foi pouco antes de eu ir para os Estados Unidos. Foi quando eu liguei para ela e falei "Myrian, ganhei a bolsa", então não pude ter muito tempo para ter aula com ela, porque viajei em 90.


Maria Teresa Madeira em 1989 (foto presente no encarte do CD Solo Brasileiro)

AD - Essa bolsa que você ganhou pra viajar foi de que edital?

MTM - Foi da Fundação Vitae, de São Paulo, que recebia o dinheiro de Liechtenstein, e que acabou.

AD - Depois você foi fazer um mestrado na Universidade de Iowa. Foi um mestrado em performance, você não teve que elaborar uma dissertação, teve que fazer um recital, não é? Foi nessa época que você estudou com o Arthur Rowe? 

MTM - Foi. Dois anos com o Arthur Rowe, e um ano com o Daniel Shapiro. 

AD - Qual a nacionalidade dos dois?

MTM - O Arthur Rowe é canadense, e o Shapiro americano.

AD - E o que você trabalhou com eles? Foram especificamente as peças do recital de formatura? Sonata de Alban Berg, Suíte Inglesa nº 2 de Bach, Fantasia Wanderer de SchubertTrio de Mozart e, depois, o Concerto nº 1 de Liszt. (Ouça aqui o recital de formatura, 

MTM - Isso tudo eu trabalhei com o Arthur Rowe, ele é um cara fantástico. Além de tocar muito bem, ele tinha um sexto sentido para escolher um repertório inteligente, do que você precisava. Então ele escolheu a Sonata do Alban Berg. 

AD - Você conhecia essa música?

MTM - Não.

AD - O que você achou dela a princípio? Gostou de primeira ou teve que ir apreciando aos poucos?

MTM - Eu gostei de primeira, mas o grande problema que eu achei nela é aquela veia da harmonia arrojada, e [o risco de] a gente se perder nos arroubos que ele apresenta. A dificuldade ali foi decorar.

AD – Imprevisível.

MTM - Sim, muito difícil, muito difícil. E a Fantasia Wanderer eu trabalhei cada compasso com ele.

AD - Ele era muito detalhista então.

MTM - Muito. E eu vi ele tocar a Sonata do Schubert em Si bemol [nº 21] - foi um negócio inesquecível.

AD - E as coisas que ele falava eram de ordem mais técnica, ou mais musical?

MTM - Musical.

AD - Então em toda a sua formação os professores não falavam muito de coisas técnicas.

MTM - Não. A Anna Carolina falou assim pra mim "Você tem muita facilidade motora". Então ela me deu o Beringer. Ela falou assim "faz um pouco isso só pra você ouvir a igualdade", mas eu nunca estudei escala, essas coisas eu nunca estudei. Sempre foi junto com as obras.

AD - Certo. Depois de dois anos, você fez um recital de formatura. E o Concerto No.1 de Liszt foi logo depois?

MTM - O concerto de Liszt foi a minha qualificação pro doutorado. Quando eu estava terminando o mestrado eu passei pro doutorado lá, então, no Liszt, eu fui solista da orquestra de lá, e valeu como uma entrada pro doutorado, a prova do mestrado pro doutorado. 

AD - E você já estava com o Liszt pronto havia um tempo.

MTM - Já. E inclusive eu fui finalista de um concurso nos Estados Unidos com ele.

AD - O Liszt foi o segundo concerto que você apresentou em público? (depois da Rhapsody in Blue)

MTM - Não, eu já tinha tocado o Concertino e o Concerto do Ronaldo Miranda. Também já tinha tocado um Concerto de Mozart [No.27, em si bemol], e o Haydn [em ré maior].

AD - Teve o Concerto do Harry Crowl também, não?

MTM - O do Harry Crowl eu estreei em um festival de música de Campos, FEMUSICA. Foi depois que eu voltei dos Estados Unidos.

AD - E já que estamos falando em concertos, depois você tocou também a Brasiliana nº1 do Radamés Gnattali.

MTM - Foi, e no mesmo dia do Concerto do Harry Crowl, eu toquei as Variações [sinfônicas sobre um tema popular brasileiro para piano e orquestra] do Lorenzo Fernandez.

AD - Nessa época você foi selecionada pelo Performing Arts Council para se apresentar em diversas cidades americanas divulgando a música brasileira. Ali que estava nascendo o CD Solo brasileiro?

MTM - Não, o Solo brasileiro já estava pronto. Eu gravei antes de ir para os Estados Unidos e a Funarte acabou nessa época. A Funarte teve um problema, porque teve o plano Collor em 90, e junto com ele a Funarte parou. E quando eu voltei, reativei esse projeto. Estava tudo gravado, e graças ao Frank [Justo] Acker, que era um defensor da música brasileira, ele gravou todo o CD na sala Cecília Meireles sem edição, sem nada [em 1989]. Ele foi lá e gravou comigo, e guardou na casa dele. Então quando eu voltei dos Estados Unidos em 93, que a Rio Arte começou a aventar a possibilidade de fazer aquele selo e lançar várias coisas, eu conversei com a Andrea Alves e a Ana Luiza, que eram as sócias da Sarau, e elas fizeram o projeto e conseguimos dinheiro pra fazer o Solo Brasileiro.

AD - Retornando, ainda sobre o período seu nos EUA - você ficou então de 1990 a 1993 - nesse período você fez mestrado e doutorado?

MTM - Não, eu cheguei a fazer só um ano do doutorado, porque eu perdi meu pai e minha mãe se tratava de um câncer, então eu voltei.

AD - E você teve seus filhos nessa época.

MTM - Sim, o meu filho, o Lucas, em 92. Quando eu voltei dos Estados Unidos é que a Letícia nasceu, em 96.


Letícia, Maria Teresa, Márcio e Lucas

AD - E que tipo de música você estava tocando pelo Performing Arts Council? Você se lembra de algumas cidades em que tocou, e que tipos de música você estava tocando?

MTM - O prêmio desse Performing Arts Council era assim: eles pinçavam os alunos que poderiam fazer um trabalho diferenciado de divulgação. Por exemplo, tinha um aluno indiano que fazia umas apresentações, tinha um grupo de dança de não sei onde, e eu fui selecionada para fazer a questão da música brasileira. Eles davam transporte, mas o transporte era o carro e você ia dirigindo (risos). Tocava em cidades lá perto, em Iowa, Illinois, e um outro estado mais ao norte... e a gente circulava.

AD - E o repertório?

MTM - Villa-Lobos, Nazareth...

AD - Tudo piano solo?

MTM - Piano solo, e às vezes com algum convidado. Eles pagavam cachê e pagavam todas as despesas.

AD - Foram as suas primeiras apresentações fora do Brasil?

MTM - Antes eu fui à Colômbia tocar com o Paulo Sérgio Santos.

AD - Já que você falou no Paulo Sérgio Santos, vamos falar dos seus duos. Você tem tantos duos que é impossível a gente listar aqui.

MTM – Sim (risos). Eu sempre toquei com muita gente, mas os duos mesmo...

AD – Para citarmos apenas alguns: Pedro Amorim (bandolim), Radegundis Feitosa (trombone), Paulo Sérgio Santos (clarineta), Carol McDavit (soprano), Altamiro Carrilho (flauta), Julie Koidin (flauta), Leo Gandelman (sax), João Bani (percussão), Maria Bragança (sax)... 

  

   
Com Altamiro Carrilho (topo esquerdo); com Leo Gandelman (topo direito); com Carol McDavit (em baixo à direita); e com Pedro Amorim (embaixo à esquerda) 

MTM – É, são muitos (risos). E ainda tem o Novo Quinteto, que foi uma coisa muito legal.


Capa do CD "Radamés Gnattali - Novo Quinteto" (2006)

AD - Ou seja, você sempre se sentiu muito camerista também, não é? É um dos seus fortes como musicista.

MTM - Ah sim, sempre. E foi o que mais abriu meu campo de trabalho foi essa questão de pianista colaboradora. 

AD - Mas sempre desenvolvendo os trabalhos solo em paralelo.

MTM - Sim, e isso é uma coisa que eu sempre falo para os alunos - o trabalho solo tem que ser constante, não interessa como você faça, você tem que achar um jeito de manter. Porque a questão da leitura boa, ela pode ser muito conveniente em certas horas, então manter o trabalho solo é meio que uma profilaxia, técnica e intelectual. Você tem que se manter em forma.

AD - Suas primeiras gravações são de 1984, você acompanhando os vencedores do II Concurso Nacional Jovens Intérpretes da Música Brasileira. Eu não sabia que você tinha ficado em segundo lugar no concurso anterior - poderia até ter gravado. O que você tocou mesmo nesse concurso?

MTM - Toquei a Mini-suíte das três máquinas, de Aylton Escobar, acho que toquei a Suíte nº 3 do Ronaldo Miranda, acho que toquei também a Toccata do Santoro. Acho que a Tocatta do Radamés toquei depois, não foi nessa época.


Capa do LP "II Concurso Nacional Jovens Intérpretes da Música Brasileira - Volume II" (1984)

AD - E isso nos traz novamente para CD Solo Brasileiro, cujo repertório tem peças dedicadas a você. Como você montou o repertório para este disco? (que é tão importante para se divulgar a música contemporânea brasileira). Foi você que concebeu o CD?


Capa do CD "Solo Brasileiro" (1995)

MTM - Foi. O primeiro projeto que eu fiz quando eu gravei isso com o Frank [Justo Acker]. Eu fui pra Funarte, e quem trabalhava lá era Luiz Claudio Prezia, que aliás foi ao concerto do lançamento, ontem, fiquei muito feliz. O Luiz Claudio trabalhava nessa linha de frente, das produções, e estava tudo programado, capa pensada, tudo, mas não saiu o LP, seria em LP. O Edino [Krieger] nessa época era presidente da Funarte, da parte de música, e eu já tocava a Sonatina dele. Ele falou pra mim: "A gente vai fazer seu CD, mas com uma condição: você não vai gravar a Sonatina" (risos). Como ele era diretor da Funarte, ele não quis. O Edino sempre muito correto, uma pessoa inigualável, não tem nada realmente para discutir com ele. Eu já tinha gravado a Cantilena do [João Guilherme] Ripper, a Mini-suite das três máquinas [de Aylton Escobar]. Eu fui gravando tudo, e ficou tudo lá. Mas não consegui lançar o LP.

AD - Você queria que fosse música contemporânea brasileira?

MTM - Sim, porque era o que eu estava tocando. Era a suíte do Paulo Libânio, que era meu amigo da Escola de música.  O CD ia ser uma consequência do que eu já vivia tocando. Quando o Solo Brasileiro foi lançado pelo selo Funarte [em 1995], aí que eu gravei a Sonatina do Edino, porque ele já não estava mais [na direção].

AD - Um pouco antes disso, você gravou o LP Melodia Sentimental com a Olívia Byington, que é bem voltado para a música popular. Isso parece ser uma marca da sua carreira: você sempre foi tanto para a música de concerto quando para a música popular. E isso faz parte dos seus gostos musicais, não é?


Capa do LP "Melodia Sentimental", de Olívia Byington (1987)

MTM - É. E esse contato com a Olivia foi o seguinte. O Artur Moreira Lima fazia um show com texto do Veríssimo, se não me engano, e ele foi fazer no Circo Voador uma temporada. Quem cuidava do Circo Voador era o Perfeito Fortuna e o Biel Fortuna, que eram parentes do Carlos Prazeres. A Olívia queria montar um trabalho camerístico com o Edgar Duvivier, que na época era o marido dela, e então o Biel falou: "Chama a Teresa Madeira", porque eu tinha feito a abertura do show do Arthur no Circo Voador. Então eles viram, e falaram com a Olívia. Tive um contato com ela, fiquei três anos e nós gravamos o Melodia Sentimental. 

AD - E depois houve outros discos que tenderam um pouco mais para o popular - sempre ficou flutuando assim, não é?

MTM – Sim.

AD - Outra coisa que se destaca é sua discografia ser integralmente dedicada à música brasileira.

MTM - Sim. E praticamente tudo que eu fiz fora do Brasil [também foi dedicado à música brasileira]. Quase. 

AD - Você poderia falar uma palavra sobre como você vê o piano brasileiro, o repertório brasileiro?

MTM - Eu acho que o repertório brasileiro tem todos os desafios e todas as compensações possíveis e imagináveis. Ele é interminável, está sempre sendo renovado porque as pessoas não param de escrever. Então é um instrumento de referência para nós pianistas. Aqui a gente tem uma escola muito forte de músicos. Não tem como um aluno dizer que não quer tocar música brasileira, porque no mínimo ele seria um desinformado.

AD - Mas ainda temos o problema do acesso às partituras.

MTM -  Sim, mas mesmo assim eu posso te dizer que nos últimos 15 anos a questão das partituras, do acesso, melhorou bastante, e as gravações. Eu sou testemunha disso, porque o que se tem gravado de música brasileira, de resgate, de digitalização... É indesculpável - agora não tem mais [desculpa]. Quando eu, nos anos 70 e 80, comecei a me interessar, fui comprar a Valsa da Dor [de Villa-Lobos] no [Oscar] Arany. A partitura era mais cara do que todos os Prelúdios e Fugas de Bach. Quer dizer, isso realmente era um desestímulo, mas agora o Museu Villa-Lobos é ali, Rua Sorocaba, 200. E eu acho uma coisa, o repertório é tão rico que se não tem uma coisa, tem outra. Brasileiro tem que ser flexível, se não não vive.

AD - Você chegou a fazer alguma encomenda durante a sua carreira, de peças?

MTM - Eu falei com o Tim [Rescala] uma vez: "Tim, queria que você fizesse alguma coisa assim que tivesse uma veia teatral", aí ele fez o Estudo para piano. Eu que procurei o Tim.

AD - Que você gravou no CD Romance Policial brilhantemente.

MTM - Foi. E a partir daí nasceu aquela “coisa ruim” dentro dele, para escrever (risos).


Capa do CD "Romance Policial", de Tim Rescala (2001)

AD - Eu queria terminar esta parte da entrevista falando sobre Ernesto Nazareth. Você sempre esteve ligada ao Nazareth. Desde a adolescência até hoje, o Nazareth sempre esteve no seu repertório de alguma maneira. Na década de 80 você começou tocando com Pedro Amorim, não?

MTM - Não, foi na década de 90. Quando eu voltei dos Estados Unidos que eu comecei a falar sobre essa semelhança do [Scott] Joplin com o Nazareth. Na verdade, quando saí daqui eu já tinha falado isso. A Andrea [Alves] e a Ana Luiza, da Sarau, me apresentaram o Pedro, e fizeram um projeto que foi aprovado nas Quintas do BNDES. Então a gente se encontrou para fazer Nazareth, em 96, se não me engano. Tocamos no BNDES um programa com Joplin e Nazareth, e aí veio em 97 o convite pra fazermos o CD Sempre Nazareth [lançado pela Kuarup]. O Mário [de Aratanha] falou "Ah, infelizmente a gente não vai poder gravar o Joplin". "Não tem problema, mas a gente continuou fazendo”. Aprendi muito com Pedro, porque ele foi um outro lado do Nazareth.


Capa do CD "Sempre Nazareth" (1997)

AD - Fazendo arranjos para Bandolim e piano, uma coisa mais chorística.  Mas você também gravou piano solo já ali, e tinha Oscar Bolão fazendo a percussão. Você aliás dialoga muito com o Bolão naquele disco.

MTM - Sim.

AD - Depois você gravou outros dois CDs de Nazareth em 2003, pela Sonhos e Sons, e o volume 2 foi indicado ao Grammy Latino. Naquela época você já tinha planos de gravar uma integral de Nazareth, não?


Capas dos CDs Ernesto Nazareth (1) e Ernesto Nazareth (2), lançados em 2003

MTM - Sim, na verdade foi uma coisa igual a uma sementinha que foi crescendo. Primeiro que você foi uma pessoa que me estimulou muito com essa ideia. Pois é uma empreitada. E é uma empreitada que não dá para você abandonar no meio, porque você se apaixona completamente. Então acho que quando você foi falando sobre o resgate do material das partituras, aquilo já foi me levando a pensar na possibilidade.

AD - Vamos lembrar que em 2002 houve uma possibilidade, quase que você gravou. Foi feito um projeto para a Petrobrás, mas que não foi aceito.

MTM - Exatamente.

AD - Então ficou em standby a ideia, e aí por volta de 2009 você começou a construir um estúdio aqui, na sua casa.

MTM - Foi. Porque, como a gente se mudou para uma casa muito grande [em Laranjeiras] e o meu marido [Marcio Dorneles] é técnico [de som] e a gente vinha de uma situação do show business - ele é muito mais ligado a show biz - a gente, vendo esse espaço aqui, já tinha esse sonho, e com essa casa foi tudo um pouco convergindo para se solidificar. Foi uma empreitada mesmo assim, muito cara, que nos rendeu muitas dores de cabeça (risos). E foram 3 anos assim.

AD - Vocês compraram um piano Yamaha de meia cauda. Qual o modelo desse piano?

MTM - É o G2. E eu te digo assim, eu acho que se não fosse ele, entendendo dessa logística de como construir, fisicamente, eu não teria feito. Pois uma obra é uma obra. 

AD - E depois você propôs para o edital da Funarte para gravar a integral.

MTM - Foi. Porque o que me estimulou é que não precisaria ser pessoa jurídica. Então entrei como pessoa física e eu atirei com todas as minhas forças ali. Também acho que tem uma coisa. O tempo, a experiência, e o afinco que a gente tem com o trabalho, são coisas que não dá pra você negar. Então por exemplo, eu me juntei com uma equipe que só me ajudou. Primeiro você, Alexandre. Se não fosse você fazer esse resgate das partituras, ia me dar uma preguiça hercúlea (risos), além do estímulo afetivo que você deu.

AD - Pessoalmente eu tinha isso como algo já certo, que algum dia iria acontecer!

MTM - Aí eu pensei: eu preciso de uma pessoa aqui do Rio que fique próxima a mim, que me conheça, que saiba das minhas limitações e também saiba da minha capacidade, porque o dia a dia das gravações é uma coisa muito cruel, e eu tinha prazos. Então eu falei: “o Marcelo Rodolfo”, que é um cara que ama música brasileira, que tem uma formação muito boa musical, um bom gosto fantástico, e que é meu irmão praticamente.


Márcio Dorneles, Maria Teresa e Marcelo Rodolfo

AD - Vocês foram colegas na UFRJ.

MTM - Colegas desde os anos 70. Eu falei: "ele vai conseguir me tirar o couro sem acabar comigo" (risos). E ele também é uma pessoa que, tanto eu quanto o Márcio, a gente tem uma ligação afetiva muito grande com ele. Então viramos uma equipe, eu, o Marcelo e o Márcio. 

AD - E o Wandrei, que entrou como designer

MTM - O amor que o Wandrei tem pela Chiquinha, o amor com que ele fez o site [ChiquinhaGonzaga.com] e tudo que envolve... e você recomendando, eu falei: "Então é ele". Porque eu tenho que ter isso - num projeto grande desse vai ter uma hora em que você vai... Se você não se apaixona, qualquer coisa vai...

 
Wandrei Braga e Maria Teresa

AD - Se a equipe for apaixonada é melhor.

MTM - Então Wandrei foi assim. um abraço.

AD - E teve a Raphaella Sanches.

MTM - A Raphaella foi o seguinte - ao longo dessas gravações, eu estava vendo que eu precisava de uma pessoa que me desse o suporte logístico, tipo mandar a documentação, fazer a inscrição dos direitos destas gravações.

AD - A parte burocrática.

MTM - É. E essa questão da produção a gente encontra muita gente que produza e que execute, mas ninguém que fique do seu lado o tempo todo, e daí eu resolvi. Graças a Deus eu achei uma pessoa que tinha um perfil. Eu falei: "eu vou treinar essa pessoa". E hoje eu fiquei sabendo uma coisa maravilhosa. Ela hoje foi fazer o exame para o DETRAN, e ela passou, então eu falei "Aaaah, agora eu tenho uma motorista!" (risos).

AD - Foram quantos meses de gravação da obra integral do Nazareth?

MTM - 14 meses. Foi de abril de 2014, acho que 25 de abril, a 25 de junho de 2015. Só que por sugestão de Alexandre Dias, ele falou "tem aquelas outras seis". Aí eu desci um dia em setembro, nós descemos e eu gravei as seis que faltavam. Então foram os 14 meses, mais uma sessão em dezembro.


Caixa com a obra integral de Ernesto Nazareth (12 CDs), lançada em 2016

AD - Agora sobre a linguagem do Nazareth. Você é a única pianista que já passou por todas essas músicas, tendo que aprender, tocar e gravar. Como é que foi esse processo de entrar na linguagem dele? Foi difícil, foi inesperado? Teve surpresas?

MTM - Olha, eu acho que a obra do Nazareth é muito diversificada, mas ela tem um carimbo de alguma forma, não sei como que ele consegue isso, tem uma assinatura. E eu acho que o tempo todo eu pensei que teria que traduzir aquilo numa questão estética muito pura. Obviamente que ele tem influências chopinianas, tem influências de Gottschalk, mil influências ele tem, polifonia, ele tem de tudo. Mas eu fiquei pensando muito na questão pianística. Ele era um bom pianista, era um cara de bom gosto, então quando eu sentia alguma dificuldade na obra dele, eu tentava suprir aquilo sem forçar muito. Por exemplo, se ele tivesse algum salto, alguma coisa muito complicada, eu ia tentar ter um timing suficiente pra fazer aquele salto, pra resolver aquilo ali sem forçar, porque, no fundo, eu acredito que ele tenha escrito tão bem tudo, que ele não fez nada pra ser antipianístico. Então eu tentei suprir as dificuldades técnicas e o que viesse de uma maneira que fosse fisicamente confortável.

AD -  O que você mais gostou de gravar na obra dele?

MTM - Foram tantos dias que eu gravei... Eu gostei muito das valsas, as valsas foram muito surpreendentes pra mim. Os tangos brasileiros eu acho que, no fundo, eu tinha uma noção daquela riqueza rítmica. Eu já tinha experimentado alguma coisa, mas as valsas eu vou te falar sinceramente, elas foram muito surpreendentes para mim. Tipo a Elétrica, Pássaros em festa.

AD - Você sente que as peças do Nazareth têm uma personalidade própria cada uma, ou elas são mais ou menos parecidas?

MTM - Eu acho que elas são como uma família. Têm coisas em comum, mas têm personalidade diferentes. Tem um DNA, uma coisa em comum, que eu acho que se a gente pensa no Nazareth como pianista, não só como compositor, e com a generosidade que você tem que se dar àquilo ali, as coisas vão se resolvendo. Mas não é fácil não.


Maria Teresa, no palco da Sala Cecília Meireles, após o recital de lançamento da integral de Ernesto Nazareth em 20/03/2016 (fotógrafo: Marcelo Rodolfo)

(A segunda parte da entrevista será publicada na semana que vem)

 


Maria Teresa Madeira e Alexandre Dias, após o recital do duo no Instituto Moreira Sales, em março de 2015