Entrevista com o pianista Miguel Proença

Em entrevista ao IPB, o pianista Miguel Proença, um dos maiores especialistas em piano brasileiro, falou sobre sobre sua carreira, sua discografia dedicada a compositores como Villa-Lobos, Alberto Nepomuceno e Lorenzo Fernandez, e sobre planos futuros. Confiram!

Alexandre Dias - Miguel, como foi o seu primeiro contato com a música? Sua primeira professora, aos 5 anos, foi Carmen Gallo Vidal. Você se lembra do que estudava com ela nesta época?

Miguel Proença - O primeiro contato com a música se deu quando ouvi pela 1ª vez o som de um piano, passeando com minha mãe, vindo de um casarão, na minha cidade natal Quaraí - RS. Foi paixão à primeira vista. Na época de Vidal, estudava repertório indicado pelos conservatórios mais conhecidos do RS. Ela exigia também leitura a 1ª vista de obras de Bach, Mozart, Chopin, Beethoven etc. Pratiquei muito solfejo em todas as chaves.

AD - Com quantos anos você passou a ter aula com o compositor Natho Henn? Como eram suas aulas com ele? Vocês chegaram a trabalhar peças dele durante as aulas?

MP - Iniciei os estudos com Henn aos 15 anos e trabalhamos juntos os clássicos e românticos. Na época, Henn me exigia diariamente ouvir na discoteca pública as gravações de Walter Gieseking, que me influenciaram enormemente na pesquisa da sonoridade pianística. Trabalhamos os Improvisos Opus 90 de Schubert, além de Sonatas de Beethoven, no caso Opus 14 nº 2 e Opus 90. E prelúdios de Debussy, 1º caderno. 

AD - Depois que Natho Henn faleceu, você passou a se dedicar ao curso de odontologia, e se formou aos 22 anos. Neste período você continuou estudando piano?

MP - Após a morte de Henn, comecei a tocar em clubes, piano bars, festas e programas de auditório, juntamente com a faculdade de Odontologia. Neste período, conheci Marly Lisboa, pianista, que foi a grande incentivadora da minha volta aos estudos e prática do piano. Anos mais tarde, nos casamos na Alemanha, enquanto eu era bolsista do governo alemão no reconhecido Daad. E, mais tarde, em Hannover, fiz meu doutorado (Konzertexamen) em piano. 


Miguel Proença quando se formou em odontologia (acervo do pianista)

AD – Nesta época você estudou com Eliza Hansen na Escola Superior de Música de Hamburgo e com Karl Engel na Escola de Hannover. Como foi a experiência nestas escolas? Houve alguma diferença na metodologia de ensino que lhe chamou a atenção? Que repertório você trabalhou nesta época?

MP - Com Eliza foi importantíssima a pesquisa da sonoridade ao piano. Já com Engel (professor na época de Maria João Pires), estudei especialmente Mozart e Schubert. 

AD – Depois você se mudou para o Rio de Janeiro. Pode nos falar um pouco sobre como ocorreu este início de sua carreira profissional?

MP - Após o doutorado, realizei concertos pela Alemanha e, ao fim de dois anos, regressei ao Brasil, me estabelecendo no RJ. No começo, fui professor no Conservatório Brasileiro de Música, realizei masterclasses nas quais participaram jovens talentos que futuramente tornaram-se grandes pianistas, tais como: Diana Kacso, [José Carlos] Cocarelli, Claudio Lisboa, entre outros. 

AD - Nesta fase você estudou com Arnaldo Estrella e com Homero de Magalhães, dois gigantes do piano brasileiro. Você se lembra de que repertório estudou com cada um? Eles lhe estimulavam a estudar músicas brasileiras além de Villa-Lobos?

MP - A experiência com Homero foi muito importante. Inicialmente, estudamos a 6ª Partita de Bach e 1º Concerto de Prokofieff, as 16 cirandas de Villa-Lobos, entre outras. 

AD - Houve algo que lhe marcou durante estas aulas? Eles costumavam tocar durante as aulas para demonstrar certas passagens do repertório?

MP - Sim, Homero era de uma grande espontaneidade musical/interpretativa, e com belíssimo fraseado, bem como de vasta cultura e inteligência musical, que me inspiraram e incentivaram a estudar mais e melhor.  

AD - Você é um grande especialista no repertório brasileiro para piano. Duas de suas maiores realizações foram a gravações da obra integral de Lorenzo Fernandez e de Alberto Nepomuceno (antes disso, apenas a obra de Villa-Lobos para piano havia sido gravada por Anna Stella Schic). Como foi o processo de preparo para a gravação destas obras? Você recebeu alguma assessoria de pesquisa para encontrar todas as partituras? Houve alguma surpresa no meio do caminho?

MP - Decidi fazer um projeto inédito no país para resgatar a memória musical da literatura pianística brasileira. Naquela época, nos anos 70, a pesquisa foi extremamente difícil pois não existia pesquisadores e estudiosos como você, que colaboraram enormemente para a recuperação, arquivo e organização de partituras dos grandes compositores brasileiros. 

AD - Outras de suas gravações são as 16 Cirandas de Villa-Lobos, Suíte Nordestina No.2 de Guerra-Peixe, e diversas peças de Fructuoso Vianna, Edino Krieger, Guarnieri, Radamés Gnattali e Marlos Nobre. Como foi o processo de escolha deste repertório?

MP - Todos esses compositores foram excelentes escritores para piano e criaram um novo estilo para o instrumento, genuíno e nacionalista. Dessa forma, a obra deles oferece essencialmente a outros pianistas inúmeras possibilidades de pesquisa tímbrica e fraseológica. 

AD - Você certamente conheceu e conhece vários destes compositores. Como tem sido o contato intérprete-compositor?

MP - Excelente. Todos os compositores que ouviram minhas interpretações já gravadas aceitaram e elogiaram a qualidade das mesmas. 

AD - Você já encomendou alguma obra para tocar em recitais? Se não, pensaria em fazê-lo?

MP - Nunca encomendei obras para recitais. E não penso em fazê-lo. Os repertórios que apresento são sempre escolhidos por mim, visto minha estreia em Londres, onde toquei a sonata breve de Lorenzo Fernandes. Já em Tóquio, realizei a 1ª audição das 16 cirandas de Villa-Lobos, além da 1ª audição de seu 5º concerto para piano e orquestra. Fiz igualmente a 1ª audição das 16 cirandas de Villa-Lobos em Viena. 

AD - Como você vê o repertório brasileiro em comparação ao repertório universal (Bach, Beethoven, Liszt, Rachmaninoff, etc)? Ultimamente temos visto no cenário internacional um aumento do interesse por compositores como Camargo Guarnieri, Radamés Gnattali, Villa-Lobos, dentre outros. Em sua opinião, o repertório brasileiro pode se tornar tão importante quanto, digamos, o repertório russo, entre os concertistas internacionais?

MP - O repertório erudito brasileiro é de altíssima qualidade. Fico enormemente feliz e gratificado com os resultados oriundos da coletânea Piano Brasil, na qual gravei as maiores obras dos principais compositores brasileiros, enaltecendo a obra dos mesmos e estimulado outros pianistas a incluírem em seus repertórios música brasileira pouca executada até então, bem como pianistas internacionais que passaram a executar/gravar repertório erudito brasileiro. 

AD - Ernesto Nazareth costuma fazer parte de seu repertório de concerto, e você gravou um excelente LP resgatando suas músicas inéditas em 1987. A obra de Nazareth tem passado por um processo contínuo de redescobrimento, ganhando cada vez mais espaço entre os pianistas de concerto. Qual a opinião sobre o lugar que Nazareth ocupa no piano brasileiro?

MP - Nazareth é sem dúvida um dos compositores mais conhecidos no mundo. E isso se deve, além da encantadora e carismática obra desse grande compositor, ao impecável trabalho de Luiz Antonio Almeida e Alexandre Dias que recuperaram, organizaram e disponibilizaram as partituras de Nazareth. 

AD - Depois de Lorenzo Fernandez e Alberto Nepomuceno, qual compositor você escolheria para gravar a obra completa para piano?

MP - Ernesto Nazareth e Ronaldo Miranda

AD - Você já teve inúmeros alunos, tanto particulares como ligados a diversas instituições de ensino. Poderia compartilhar conosco algumas orientações que passa a seus alunos? (referentes a questões técnicas e/ou musicais).

MP - Resumo meu pensamento didático em 2 aspectos principais: imaginação sonora e fraseado.

AD - Você é um dos poucos pianistas brasileiros a ter o honroso título de artista Steinway. Como foi este convide, e que tipo de benefícios isto lhe gerou?

MP - A direção artística da Steinway, ao ouvir as minhas gravações, elogiou a maneira como me relaciono com o piano, extraindo uma sonoridade que, segundo eles, é diferenciada, emociona o público e realça todas as qualidades tímbricas dos pianos Steinway. Essa honraria me trouxe destaque artístico, facilitando meu acesso a todos estúdios Steinway do mundo e abrindo portas em grandes espaços para apresentar meus recitais. 

AD - Em 2005, foi lançada a excelente caixa de 10 CDs “Coletânea Piano Brasileiro”, reunindo boa parte de sua discografia dedicada a compositores brasileiros. A partir de então, você passou a realizar a turnê “Piano Brasil”, que atualmente está em sua 8ª edição, e já o levou a mais de 130 cidades brasileiras, divulgando este repertório. Como tem sido esta experiência de tocar em cidades com diferentes vivências musicais? (algumas já acostumadas a uma intensa vida de concertos, e outras que raramente recebem pianistas). Que tipo de prós e contras tem encontrado?

MP - As turnês são surpreendentes quanto à reação dos diferentes públicos, acostumados ou não com a música erudita. Observo reações de amor, ternura, entusiasmo entre outras. As turnês são muito importantes pelas atividades de inclusão social e formação de plateias. O projeto Piano Brasil envolve, além do Recital, um Ensaio Aberto direcionado a estudantes do ensino fundamental da Rede Pública e Masterclass para estudantes de música, professores e pianistas profissionais. A coletânea de discos, composta por 10 CDs, oriunda do projeto recebeu o prêmio da Unesco Patrimônio da Música Brasileira. 


Capa da coletânea de 10 CDs "Piano Brasileiro", de Miguel Proença.
Os volumes separados podem ser adquiridos através do site da Tratore.

AD - Em 2008, você tocou no Carnegie Hall, em Nova York. Você se lembra de qual repertório exatamente tocou lá, e como foi a receptividade pela música brasileira?

MP - Na primeira parte toquei obras pequenas de Villa-Lobos, e terminei com homenagem a Chopin. Já, na segunda parte, a Sonata nº 3, Opus 58, em Si Menor [de Chopin]. O teatro estava completamente, e a receptividade foi ótima. Foi um dos grandes e mais bonitos momentos da minha carreira. 

AD - E a receptividade na Europa?

MP - Toquei em inúmeros países na Europa (Alemanha, Inglaterra, Suíça, Itália, Áustria, França, Praga, Espanha, Portugal, Bélgica entre outros países), e fui muito bem recebido em todos países, com muito sucesso de público e crítica. 

AD - Além de um vasto repertório brasileiro, você também domina obras de Schubert (Sonata No.21), Chopin (os 24 Prelúdios e a Sonata No.3) e Brahms (Sonata No.3), para citar apenas alguns. Há alguma obra que você gostaria de aprender e que ainda não teve a oportunidade?

MP - Sim. A 2ª sonata para piano de Rachmaninoff. 

AD - Quais são seus projetos futuros?

MP - Continuar as edições do Piano Brasil, projeto pelo qual guardo um enorme carinho e reconhecimento. Gostaria também de excursionar pela América Latina, apresentando Recitais e Masterclasses. Quem sabe, desejo eu, a partir de obtenção de patrocinadores, levar a concepção do Piano Brasil para os países latino americanos. 

AD - Você é um grande incentivador de novos talentos – que conselho daria hoje, em 2016, a um jovem que tem interesse em seguir a carreira de concertista?

MP - Estudar com disciplina e inteligência, procurando desenvolver a sua personalidade musical, e trabalhar o maior número de obras importantes do repertório pianístico, sem jamais esquecer que além da técnica perfeita, o público quer a emoção da música.