Depoimento de Nelson Freire, para a inauguração do IPB (parte 1)

No dia 23 de julho de 2015, o grande pianista brasileiro Nelson Freire nos recebeu em sua casa no Rio de Janeiro, e conversou em detalhe com Alexandre Dias sobre as suas primeiras professoras (Lúcia Branco e Nise Obino), as aulas com o austríaco Bruno Seidlhofer, suas participações em concursos na adolescência, os pianistas que admira (como Guiomar Novaes), e projetos futuros. A entrevista está dividida em duas partes, e a segunda parte será postada na próxima semana.


Nelson Freire, olhando para a foto de sua professora Lúcia Branco, entre fotos de Franz Liszt e Guiomar Novaes

AD – Em primeiro lugar eu gostaria de agradecer sua disponibilidade em dar esta entrevista, que significa muito para os seus fãs, e para o piano brasileiro. Eu gostaria de começar relembrando uma foto tirada na casa de Lúcia Branco em que aparecem você ainda criança, Jacques Klein, Arthur Moreira Lima e Luiz Eça, todos alunos de Lúcia Branco, com exceção de Jacques Klein.

NF – Como com exceção de Jacques Klein?

AD – Jacques Klein foi aluno de Lucia Branco? Não conhecia esta referência.

NF – Que isso! Com ela que ele se preparou para fazer os concursos e antes de ir estudar em Viena.

AD – Obrigado pela excelente informação, vamos corrigir isto.

NF – Ela foi importantíssima... o Jacques tocava muito popular.

AD – Sim, ele era pianista de jazz.

NF – Ele foi estudar com o [William] Kapell, mas parece que não funcionou, pois ele [Kapell] deveria estar muito ocupado em sua carreira.

AD – Exato, segundo o depoimento do Jacques ao Museu da Imagem e do Som, a Guiomar sugeriu que ele fosse estudar com o Isidor Philipp, que tinha 90 anos na época e não deu muito certo, e depois foi estudar com o Kapell.

NF – Ele [Jacques] acabou voltando para cá e estudou com muita gente, e foi D. Lúcia que deu um jeito nele, e estudou com ele o programa do concurso [de Genebra]. Depois foi para a Europa e estudou um pouco com o Bruno Seidlhofer. Foi muito importante para ele. Mas isso não consta muito nas biografias dele. Por isso ele está nesta foto.


Nelson Freire, Luiz Eça, Lúcia Branco, Jacques Klein, Nise Obino e Arthur Moreira Lima, na casa de Lúcia Branco.

AD – Então ele é de uma geração mais antiga que a sua, que estudou com a Lucia Branco.

NF – Praticamente não tão antiga. Ele é de uma geração mais antiga, mas foi na mesma época. Ele começou a estudar com ela em 1951, 1952, por aí.

AD – Você se lembra de alguns detalhes das aulas com a Lúcia Branco? Em uma entrevista você menciona que ela lhe dava ­peças avançadas para estudar. Você poderia lembrar de algumas dessas peças ou alguns detalhes que ela falava?

NF – Bom, uma delas você acabou de ver agora, os dois prelúdios de Rachmaninoff.


Programa de concerto de Nelson Freire, no Foyer do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em 22/11/1956.

AD – Sim, Op. 32 No.10 e Op.32 No.12, que você tocou em um recital naquela época.

NF – Eu ainda não tinha feito 11 anos. 3º Scherzo de Chopin, Sonata Op.2 No.3 de Beethoven. A D. Lúcia era uma pessoa incrível. Ela tinha um senso extraordinário. A Guiomar uma vez falando sobre a D. Lúcia – elas se conheceram desde pequenas – Guiomar dizia “a Lúcia tem o dom da didática”, e realmente tinha. Era muito inteligente, tinha uma personalidade incrível, um “vozerão” assim, e uma cultura enorme; tinha o dom da palavra, e ela sabia transmitir as coisas também para uma criança, como eu. Eu me lembro de um detalhe importante, que foi quando eu fiz o primeiro concurso da OSB em 1956, tinha uma peça de confronto além do concerto. Era a Toccata e Fuga em dó menor de Bach [BWV 911], que é dificílima. O concurso era em março/abril e eram férias. Eu tinha ido para Boa Esperança com a família e tinham anunciado “Toccata de Bach” e nós pensamos que seria somente a Toccata e não a Fuga. Então estava eu lá em Boa Esperança, passando o mês de férias, brincando, e D. Lúcia liga – naquele tempo ligar do Rio para Boa Esperança era como ligar hoje para a lua – e a D. Lúcia fala com a minha mãe “não, D. Augusta, manda ele ler a Fuga, e assim que ele chegar trabalharei com ele”. E aprendi para tocar no concurso. Mas, então, um belo dia aqui, isso me vem à tona agora, um pianista da Bahia que morava nos EUA, Manoel da Veiga, ele viu uma partitura minha dessa toccata... Porque eu nasci em Boa Esperança, tinha 11 anos e naquela época não tínhamos muito acesso a discos nem a coisa nenhuma, e na recapitulação da fuga tem um contraponto o tempo todo, e ela queria que eu fizesse um som de cravo, mas como eu iria saber como era um som de cravo se eu nunca tinha ouvido um cravo, nem visto? Então ela escreveu na partitura “como caixinha de música”. Então puf, deu um estalo! Ela tinha uma noção de estilo fantástica, de timing, de tudo.


Nelson Freire, aos 10 anos, ao lado de seu tio

AD – Ela tocava nas aulas?

NF – Não. Ela fumava muito. Tomava cafezinho, sentada. Não era daquelas de dar exemplos... Uma vez entre cada cem vezes que ela dava um exemplo, assim, de qualquer coisa. Mas não era daquelas que ficavam tocando “no fininho” não (risos). Tem muita professora que fica tocando “no fininho” para se mostrar. Era inteligente, tinha um ouvido absolutésimo. Ela não perdoava nenhum erro de leitura, era incrível. Tem um desses prelúdios, eu vou até te mostrar, que até o Horowitz toca a nota errada, e não é uma coisa tão conhecida assim, ainda mais na época. [Nelson procurou a partitura, mas nesse momento não a encontrou]. É um dobrado sustenido que a maioria lê sustenido.

AD – Ela foi aluna de Arthur De Greef, que por sua vez, estudou com Franz Liszt. Em 1970 e 1994 você interpretou o Concerto em dó menor do De Greef. Você se lembra de alguma história específica que a Lúcia Branco tenha contado sobre essa linhagem pianística De Greef-Liszt?

NF – Ela falava muito disso, em questão de técnica e tudo...  Dona Lucia costumava me dizer como ele [De Greef] gostaria de mim, houvesse me conhecido. É curioso, ouvindo suas gravações (no youtube), percebo que há realmente um parentesco pianístico/musical comigo [ouça aqui um exemplo de gravação do De Greef]. Os ensinamentos são passados através de gerações como nas tradicionais famílias. Por isso é tão importante o estudo de tradições nas interpretações dos grandes músicos. E hoje vejo que há uma tendência a ignorar/desprezar esse aspecto. Quando a linhagem vem de Haydn, Beethoven, Czerny, Liszt... Aí estão baús de conhecimentos de estilos, detalhes interpretativos e pianísticos! Cultura!! E também sempre falavam como era importante o cultivo das outras artes como literatura, pintura.... E a importância de viver a vida em sua plenitude. Quando vejo jovens debruçados 10 horas por dia no piano, penso, o que ele terá a dizer? Uma continuação do estudo no palco? Às vezes tenho essas sensações assistindo a concertos.


Programa de concerto em que Lúcia Branco tocou o Concerto em dó menor de seu professor, Arthur de Greef, em Bruxelas, 1924.

[Voltando às aulas com D. Lúcia Branco] Tinha muita coisa, na época, de restringir a maneira de tocar piano, como a escola francesa. A D. Lúcia tinha horror a isso, dizia que só existe uma técnica boa que é a técnica moderna. As aulas dela eram uma hora de aula, mas era tão condensada essa hora – eu tenho até um livrinho com as indicações dela, gostaria de ver?

AD - Adoraria ver.

NF – Vou ver se eu acho. Cada aula começava sempre com solfejo, desenvolvia muito a leitura. Depois, uns 10 minutos de técnica, cada vez uma coisa diferente. E não era técnica burra, era baseada em som, em touché também, legato, staccato, perlé.

[Nelson retorna com um LP 10’’ que lhe foi presenteado por Lúcia Branco, com a Sinfonia No.40 de Mozart]

NF – Houve uma época em que eu estava interessado em Liszt, etc, e este é um presente de aniversário que ela me deu, com esta dedicatória:

“Nelson, que Mozart, o músico dos anjos venha servir para equilibrar seu entusiasmo atual pela paixão da música romântica e moderna. Conserve-se, meu querido Nelson, dentro de uma justa medida admirando e amando tudo que traz o selo divido do tempo e do espaço, Lúcia Branco”

NF – E este é um recibo de aula (risos).


Recibo de aula de Lúcia Branco, 01/12/1955

NF – Eu fui primeiro aluno da Nise [Obino], a Nise era pianista, mas começou a dar aulas; porque quando eu fui estudar com D. Lúcia, eu tocava, assim, de qualquer jeito. E então D. Lúcia me ouviu e disse que eu era um talento muito grande, mas que ela não teria tempo necessário para me preparar. Eu era muito rebelde, uma criança diferente. Tanto que eu toquei para ela e depois me escondi atrás do piano - ela dava aulas num piano de armário e na sala tinha um piano Steinway de cauda.  E então - eu fui com meu pai até, porque minha mãe não estava - ela pegou o telefone e ligou para a Nise, depois eu soube disso conversando com a Nise:  “encontrei um garoto tão louco quanto você, então acho que pode dar certo” (risos). E a Nise em três meses me fez esquecer tudo o que eu fazia, começava colocando esparadrapo nas falanges, porque eu “quebrava” os dedos todos, assim. A D. Lúcia tinha um bloquinho, as primeiras [aulas] foram copiadas pela minha mãe.

[Nelson mostra seu caderno de aulas com Lúcia Branco, e lê o conteúdo de uma das aulas, em 1952]

“Bona, solfejo;
Mozart - Sonata em fá maior, 1º tempo
Korsakoff -  Besouro
Chopin – Prelúdios No.4 e No.6
Colorido, pedal de cor.”

NF – Esses aqui eram dificílimos, os prelúdios No.4 e 6. Eu me lembro que ela contou uma vez... Porque para uma criança de 8 anos sentir essa emoção, não conseguia. E ela começou a contar uma história tão triste que se entusiasmou, que de repente, quando olhou, eu estava em pranto (risos).

“Mozart - Sonata 2º tempo - leitura
[Rimsky-]Korsakoff-  [O vôo do] Besouro”

AD – Essa “leitura” indicava leitura à primeira vista durante a aula?

NF – Não, trazer lida. Depois tinha outra etapa, que era trazer “colorido” (com interpretação), e depois de cor, pronta. Essa era a sequência. E tinha sempre o Bona antes [em uma das aulas está marcado de 45 a 50], depois tinha uma parte de exercício escrito também, técnica, e tudo isso em uma hora, imagina.

“Dedilhado, ataque com toda a igualdade”

NF – Ela punha [neste caderno] tudo o que precisava, o que estava faltando nas aulas. [Nesta outra aula], o piano lá em casa estava ruim, e minha mãe perguntou as boas marcas de piano – “Schiedmayer, Bechstein, Blüthner, Steinway”, Minha mãe sempre ia às aulas comigo.

“Guia prático de Villa Lobos”

NF – Aqui já é a letra da D. Lúcia.

“Estudar acompanhamento da mão esquerda e tocar todas as notas em pizzicato” [Valsa de Chopin]
“Acertar segunda parte da Valsa Chopin”

NF – Tudo que acontecia na aula ela punha.

“Shostakovich - Três danças fantásticas”

NF – Toquei isso no primeiro recital.

"Villa Lobos - A maré encheu;
Guarnieri - Sonatina No.3;
[Henrique] Oswald – Barcarola, Pierrot e Tarantella
Guarnieri - Fuga
Frases ligadas, sustentar as notas presas e cantar as frases"

"Villa Lobos - Manquinha e Na corda da viola;
Rachmaninoff – Prelúdio [Op.3 No.2]"

“Fazendo ligação por meio de acavalamento”.

NF – Acavalamento era a passagem do polegar. Ela tinha uns termos também, “pacotinho”, “empacotar”, era tocar uma escala de maneira “embrulhada” [sem igualdade entre as notas]. “Nada de pacotinho” (risos). E era tudo numa linguagem que eu entendesse.

“Pulso firme, articulação”
“Sinta a música. Em seguida mande-a para os dedos. Ouça o que está tocando"

AD – Você sentia que já sabia tudo isso intuitivamente?

NF – Não, eu comecei do princípio de novo.

“Lorenzo Fernandez - Suíte;
Bach - Invenções a três vozes;
Concerto de Mozart K.271 1º tempo [No.9, em mi bemol maior];
Chopin - Fantasia-improviso”

NF – Essa já é a letra da Nise [em 1953]. E aí vai progredindo.

Rachmaninoff – 2 prelúdios [Op.32 No.10 e Op.32 No.12], em 1956
Chopin – Scherzo [No.3], trabalho técnico, colorido e pedal.
Beethoven – Sonata [Op.2 No.3, em dó maior]. Inteira, perfeita!” (risos)
“Bach - Toccata e Fuga [em dó menor BWV 911]. Colorido, e de cor. Perfeito, pronto, com estilo e todos os coloridos”

NF – Ela disse que uma vez disse para uma aluna que trouxesse colorido, e a aluna coloriu toda a música (risos). Ela tinha um senso de humor engraçadíssimo. Também uma vez uma aluna estava tocando tudo desencontrado, e perguntou, “por que você está tocando...” “Ah, D. Lúcia, medi com a régua!”  (risos).

 “Brahms - Dança Húngara [talvez a 6]”

AD – Incrível, então temos aqui seis anos de anotações de aulas, que vão de 1952 a 1958 [dos seus 8 aos 12 anos].

NF – Sim.

“Beethoven - Sonata Op. 53 Waldstein;
Liszt - 8ª Rapsódia” [1958]

NF – Isso foi um programa. As aulas com a D. Lúcia eram todas as quintas-feiras.

“Villa Lobos - Dança [do Índio Branco]

NF – E eu vivia tendo ataque de risos. Ela tinha vozerão enorme. Quando chegava na vez da Dança do Índio Branco, ela falava “Vamos ouvir a dança do meu parente” [com voz grave]. A peça começava com uma anacruse, e ela: “UM!” [dando o primeiro tempo], e eu começava a rir (risos).

Moszkowski, tocava muito Moszkowski.

AD – O Op.72 No.6?

NF – Vários estudos.

“Quatro ritmos. Colcheias. Mãos juntas, em perlé, bem igual”

AD – Ela tinha então um conhecimento muito vasto do repertório pianístico.

NF – Vastíssimo. E de estilo, de tudo. Por isso que era fantástico quando ela... Era o bom senso também. Ela nunca me disse uma coisa que depois eu... Sabia o que falava. Eu me lembro também depois, que ela sempre dizia, chega um ponto em que mandava o aluno embora “Vai embora! Vai embora!”, quando achava que não tinha mais nada para ensinar. Ela detestava essas professoras que ficavam agarrando o aluno. “Vai embora!”.

AD – Ela era muito brava nas aulas?

NF – Não... Mas ela impunha respeito. Tinha um vozerão grosso, fumava – a cada baforada de cigarro formava um verdadeiro cogumelo de fumaça. Dona Lucia não tinha medo de nada. Pelo contrário, as pessoas é que tinham dela. Certa ocasião ela me levou para assistir um recital do [Witold] Malcuzynski no Municipal. Era às 21h e eu era criança. Eu disse "mas vão me barrar...". Ela: "Não se preocupe, tenho três métodos para isso: primeiro converso com o porteiro, se não der certo eu suborno, e aí, meu filho, se não funcionar, uso a terceira alternativa!!”. Fiquei com vergonha de perguntar na hora qual seria esse derradeiro recurso e até hoje me pergunto o que ela faria. Imaginei as coisas mais incríveis! E a Nise era outra também... As duas desquitadas, fumavam. 

AD – A próxima pergunta é justamente sobre a Nise Obino. No documentário dirigido por João Moreira Salles (2003), você relembra com carinho da Nise Obino, e fala do impacto que ela teve sobre o seu desenvolvimento, que você acabou de mencionar.

NF – Muito. As duas se complementavam. Elas tinham muita coisa em comum, personalidades extravagantíssimas, desquitadas. As duas eram fantásticas. A Nise era exuberante, muito sedutora e D. Lúcia era uma mulher discreta. A Nise não, era tipo artista de cinema, sedutora. E a D. Lúcia às vezes falava “a Nise está impossível, a Nise é a Carmem da ópera!”.


Nise Obino, professora de Nelson Freire

AD – Então elas tinham bastante contato.

NF – Muito, porque a Nise era assistente dela, depois brigaram.

AD – Então você estudou com as duas mais ou menos ao mesmo tempo. Porque eu achava que a Nise Obino foi um pouco depois da Lúcia Branco.

NF – Não, foi ao mesmo tempo. A D. Lúcia que me passou pra Nise. E a Nise que realmente descascou o abacaxi. E ela sempre queria mais surpreender a D. Lúcia. Então em três meses eu já estava com um programa pronto pra recital.

AD – Você poderia falar um pouco sobre esses três meses?

NF – Ah, foram aulas diárias com a Nise, incríveis. Primeiro ela vinha em casa, depois eu passei a ir na casa dela. Então eram duas aulas por semana com a Nise e uma com a D. Lúcia. E a Nise trabalhava comigo. Após esses primeiros meses de intenso trabalho com Nise, ao voltar às aulas com D. Lúcia, já havia uma transformação e daí em diante estava entregue nas mãos de duas grandes pedagogas.

AD – O mesmo repertório portanto era trabalhado com as duas?

NF – O mesmo repertório, claro.

AD – Certo, então todas essas músicas que estamos lendo no caderno também estavam sendo trabalhadas com a Nise Obino.

NF – Sim. Mas a D. Lúcia que era a chefe ali. A Nise era a assistente. Mas uma personalidade muito forte.

AD – E você se lembra de algum conselho especial que a Nise tenha lhe dado? O que você sentiu que abriu as portas para você nesse pouco tempo?

NF – Tanta coisa, tanta coisa. Uma vez tinha umas pessoas na casa dela e ela pediu para eu tocar alguma coisa. Eu toquei - devo ter tocado muito mal – mas todo mundo achou lindo, e a Nise estava aparentemente satisfeita – porque a Nise me tratava de igual para igual, então de vez em quando ela falava, em um tom mais sério, bonitona: “Nelson, vamos falar de homem para homem” (risos). E nesse dia, depois que as pessoas foram embora, ela disse: “meu filho, nem tudo são flores, está uma porcaria” (risos). Então essa crítica era muito importante, que eu tinha que saber ter autocrítica.

AD – E a Nise tocava durante as aulas?

NF – A Nise tocava. Era um temperamento! Uma coisa louca. Ela dava enorme importância à sonoridade. Tinha um som belíssimo, cantava e possuía um legato maravilhoso. Aliás na segunda aula que tivemos, ela veio com a seguinte notícia: "Hoje vou te ensinar uma coisa nova e muito importante: o Legato". E em seguida demonstrou ao piano. Aliás para uma criança é difícil fazer/compreender o legato. Elas preferem o staccato, por ser mais brincalhão, talvez. À medida em que fui amadurecendo, notei que passei a cultivar com intensidade o som. Creio que foi uma "herança" do meu convívio musical com a Nise.

AD - Como era o tipo de técnica dela?

NF – Tem no youtube uma gravação dela [link

AD – Sim, do prelúdio e fuga em lá menor Bach-Liszt. E o seu repertório ela também conhecia e tocava?

NF – Sim, muita coisa ela me deu, claro, o estudo Op.10 No.8 [de Chopin], essa Rapsódia No.8 [de Liszt] ela tocava quando era criança. A quarta balada [de Chopin]... A quarta Balada foi assim. Chegaram aqui as duas, porque tinha que escolher uma balada para o concurso [I Concurso Internacional de Piano do Rio de Janeiro, 1957].

AD – E escolheu logo a quarta.

NF – Não, justamente eu ainda não conhecia nenhuma. O [Arnaldo] Estrella deu um recital com as quatro baladas, e a D. Lúcia falou “vai e depois você diz qual que você gosta mais”. Eu lembro que não gostei nada da segunda (mas hoje em dia adoro). Então vieram as duas aqui, para saber de qual que eu tinha gostado. E D. Lúcia estava querendo que eu tocasse a primeira, a “dela”, mas a Nise, do canto da sala – a D. Lúcia não viu nada - fez o número quatro com as mãos (risos). Então a D. Lúcia perguntou “qual você escolheu”, e eu falei [inocentemente] “a quarta” (risos).

AD – Isso foi quanto tempo antes do concurso?

NF – Pouquíssimo, dois meses. [aos 12 anos]

AD – Nessa época você tocou também o Islamey, não?

NF – Dois anos depois [aos 14 anos], no meu recital de despedida, que foi em três partes. Teve Islamey, teve a Sonata de Brahms [Op.5 em fá menor]. Eu descobri Brahms porque a Nise era muito brahmsiana. [Além disso], a Nise deu a primeira audição do Concerto No.1 de Shostakovich aqui, com Camargo Guarnieri.

[Nelson mostra o programa do seu recital de despedida no Rio de Janeiro, antes de partir para a Europa]

I
Bach - Myra Hess - Jesus, alegria dos homens (Coral da Cantata)
Bach - Busoni - Viens, Dieu Createur (Coral)
Beethoven – Sonata Op.110 [estudada por causa da Nise]

II
Brahms - Sonata em fá menor Op.5

III
Lorenzo Fernandez - Três Estudos em forma de Sonatina
Debussy – Children’s corner (Doctor Gradus ad Parnasum; Le petit berger; Golliwogg's cake-walk)
Balakirev – Islamey

[No programa há algumas anotações de Nise Obino, feitas durante o concerto: “Ótimo! Harmonias completas”; “Notas que não se escutam”]

AD – Você mencionou que logo depois foi o I Concurso Internacional de Piano do Rio de Janeiro, em 1957, que você preparou com elas.

NF – Foi mais com a Nise. Porque, a dizer a verdade, eu não era o queridinho da D. Lúcia. A Nise perguntou pra ela... Porque a Nise quando se casou pela segunda vez – que eu era contra, eu e a D. Lúcia – ele [o esposo] a proibiu de dar aulas, mas então teve uma festinha na casa da Nise, eu fui, e toquei lá também, depois ela me chamou e perguntou “D. Lúcia tem trabalhado isso com você?”, eu respondi “tem...”. Então acho que ela falou com a D. Lúcia, que falou “Ah, ele tem 12 anos, qualquer coisa que ele fizer vai ser bonitinho”. A Nise ficou furiosa, e comecei a estudar às escondidas, a Nise me chamou para estudar às escondidas com ela. E no final das contas eu passei na frente de vários na final [do concurso]. Até então isso jamais poderia ser imaginado.


Foto de Nelson Freire no programa do I Concurso Internacional de Piano do Rio de Janeiro (1957)

AD – Você surpreendeu a todos tocando o 1º movimento do concerto Imperador, de Beethoven.

NF – Quando eu toquei o concerto de Mozart [No.9], pela primeira vez que toquei com orquestra em 1956, depois a D. Lúcia disse “coitadinho” - ficou com um remorso horrível - “tão pequenininho sendo exposto a tocar”. Mas então ela ficou surpreendida porque eu disse “ah, e agora o que que eu vou estudar? Qual o próximo concerto?”. Ela quis que eu estudasse um de Beethoven, e falou: “mas você vai escolher entre o 4º e o 5º, esses são o Beethoven no seu apogeu”, porque os outros têm influência de Haydn, e outros. E queria que eu escolhesse o 4º, mas eu escolhi o 5º porque achei mais exuberante, pra uma criança.

AD – Você conheceu esse concerto ouvindo ao vivo ou em gravação?

NF – Eu comprei a gravação. A primeira gravação que eu escutei foi a do Horowitz, com o Fritz Reiner [ouça aqui a gravação completa].


Nelson Freire, durante a premiação do I Concurso Internacional de Piano do Rio de Janeiro (1957)


Nelson Freire, ao lado de Juscelino Kubitschek, durante a premiação do I Concurso Internacional de Piano do Rio de Janeiro (1957)

AD – Como foi a experiência de participar desse concurso? Você tão novo no meio de tantos adultos...

NF – Ah, foi uma divisão de águas para mim. Minha vida tem várias fases. Antes do concurso eu estava no 1º ginásio, dava um recital por ano, com programas diferentes, mas não tinha assim aquele ímpeto. O concurso, com todos aqueles pianistas, e muitas coisas eu ouvindo pela primeira vez, sonata de Chopin, eu nem conhecia sonatas de Chopin...

AD – A No.3?

NF – As duas. A Rapsódia sobre tema de Paganini [de Rachmaninoff], a Polonaise Op. 44 [de Chopin], fiquei conhecendo ao vivo.

AD – E você as ouvia com entusiasmo?

NF – Claro. E depois que acabou o concurso eu vivia comprando discos; estudei 12 concertos nessa época! Com 14 anos eu tinha 14 concertos no repertório.

AD – Então você se apaixonou mais profundamente pelo piano nesta época.

NF – Sim, pela música e pelo piano. Foi uma coisa muito forte, divisor de águas.

AD – Sim, para uma maturidade.

NF – Não, maturidade ainda não, mas uma coisa que deu um impulso, impulsionou. Foi um impulso muito grande, numa idade importante, que era a puberdade, a adolescência, aos 12 para 13 anos.

AD – Pouco depois você foi estudar com o famoso professor austríaco Bruno Seidlhofer.

NF – Sim, grande professor.

AD  Que deu aulas para o Jacques Klein antes de você, e posteriormente Homero de Magalhães e outros. Que memória você teria dessa época? Foi com ele que você se preparou para o Concurso Vianna da Motta? [que você ficou em primeiro lugar, em Portugal]

NF – Não, não foi. Eu fui pra Viena com 14 anos, sozinho, e se você acredita no que você aprende a posteriori, o que eu aprendi com ele eu digeri depois que estudei com ele. Na época não, eu não gostava, era difícil estar em Viena sozinho e tudo. E eu não era uma pessoa disciplinada...

AD – Para estudar?

NF – Para tudo. De repente eu fiquei livre. Mas com o tempo eu fui assimilando as coisas que ele me passou. Depois, quando voltei a estudar com ele, com 20 anos eu voltei a Viena, e passei um curto período, depois do Concurso Vianna da Motta.

AD – Então foram dois períodos de aulas que estudou com ele.

NF – Foram dois períodos, eu fui resgatar um pouco o que ele tinha para me ensinar.

AD – Você estudou com ele então de que idade até que idade?

NF – Dos 14 aos 15, eu tive poucas aulas com ele. E depois aos 20.

AD – Então depois dos 15 você ficou sem professor?

NF – Fiquei.

AD – E se preparou sozinho para o Vianna da Motta.

NF – Foi. Mas tive umas aulas com Stefan Askenase, pouquinho, e toquei duas vezes para o [Nikita] Magaloff.

AD – O Bruno Sidelhofer tocava durante as aulas, dava exemplos?

NF – Tocava. Mas era impossível ouvir porque ele “rosnava” enquanto tocava (risos) [Nelson imita os ruídos]. Mas, recentemente encontrei uma gravação dele tocando Bach, o Capricho sobre a partida do irmão, uma beleza [link]. Era um grande músico pra esse tipo de repertório, Bach, Mozart, os clássicos. Fantástico. 


Nelson Freire ao lado de seu professor austríaco Bruno Seidlhofer

AD – E qual era o repertório que você estudava com ele? Era mais Beethoven, Brahms?

NF – Bom, ele me passava uma coisa e eu trazia outra. Ele me fez tocar a Sonata No.2 de Brahms. Bach, Prelúdio e Fuga. Sonata op. 111 de Beethoven.

AD – Então você estudou a Op.111 aos 14, 15 anos?

NF – É, com ele. Mas duas aulas, ou três aulas, depois nunca mais. Eu só vim a tocá-la pela primeira vez agora, no ano passado. E 2º [concerto] de Brahms, que foi a primeira coisa que toquei pra ele, que ele ficou muito impressionado. Carnaval de Schumann. Mas eu era tão rebelde na época, eu tinha conhecido a Martha [Argerich]... Era um outro tipo também nessa época, liberdade, rebeldia, enfim. Eu conheci várias coisas através da Martha, inclusive jazz e tudo isso, e Rachmaninoff também, como pianista.

AD – Foi ela que lhe apresentou as gravações do Rachmaninoff?

NF – Foi ela que me apresentou. Aliás, eu já conhecia, mas não tinha dado a devida atenção. Eu tinha um disco dele tocando o 1º Concerto [dele], com a Rapsódia [sobre um tema de Paganini]. Mas eu o ouvi tocando a Sonata [No.2] de Chopin, que eu adorava a [gravação] da Guiomar, que fazia um [efeito] no final [4º movimento], os ventos, e a Martha dizia, “ah, você precisa ouvir pelo Rachmaninoff”, e fiquei apaixonado por ele. O Carnaval de Schumann, fiquei siderado também com o Carnaval de Schumann por ele [ouça aqui a gravação]. E resolvi uma vez levar pro Seidlhofer o Carnaval de Schumann, alla Rachmaninoff, que toca tudo ao contrário do que ele achava. E ele começou “Mas o que é isso?!”, e eu disse “Ah, o Rachmaninoff faz assim”. E mais outro trecho, “Que isso?!”, “o Rachmaninoff também faz”. Então errei um negócio assim e ele parou e perguntou: “E o Rachmaninoff faz assim também?” (risos).

AD – E eram em alemão as aulas?

NF – Em alemão.

AD – Você teve que estudar alemão rapidamente.

NF – Sim, às vezes nós levávamos intérprete, porque tinha muitos brasileiros. Essa brasileirada toda estudava lá, por causa do Jacques [Klein] e do [Friedrich] Gulda. Era uma época em que Viena era o lugar para se estudar. E quando eu cheguei lá eu era o mascote da turma.

AD – Em 1964 você ganhou o primeiro prêmio do Concurso Viana da Motta, em Portugal. Você se lembra do que você tocou?

NF – Lembro, claro. Tinha uma peça de confronto dificílima que era a Sonata de Carlos Seixas, que eu aprendi um dia ou dois dias antes. Eu não tinha a música, não me lembro o que que aconteceu. Sonata de Mozart em lá maior [No.11], foi a primeira vez que toquei. E como eu não a conhecia bem, podia tocar o primeiro tempo ou segundo com o terceiro. Eu escolhi o segundo com o terceiro porque a Marcha turca todo mundo sabia, eu tocava quando era pequenininho (risos). Tinha a peça de confronto que era a Barcarola de Chopin.

AD – Você já tocava a Barcarola ou aprendeu para esta época?

NF – Aprendi para esta época. Mas tinha coisas que eu já tocava, acho que toquei a 4ª Balada, Sonata No.3 de Brahms.

AD – O Brahms deve ter sido na final?

NF – Na final tinha um recital de livre escolha, e acho que incluí a Sonata. Mas tinha o Estudo Patético de Scriabin, o [estudo] Op. 10 No.4 [de Chopin], Liszt-Paganini Estudo No.2. Toquei [Camargo] Guarnieri, que estava na banca, a Dança Negra.

AD – Tinha mais alguém famoso na banca?

NF – Nádia Boulanger, Jacques Février, Sequeira Costa (presidente do juri), Ana Stella Schic, Camargo Guarnieri, [Luís de] Freitas Branco, Maria Leveque [de Freitas Branco]. Toquei também o último tempo da 7ª Sonata de Prokofiev, e o 1º concerto de Liszt,  que eu já tinha tocado aqui, antes de ir para Europa.

AD – Tinha algum outro brasileiro participando?

NF – Eduardo Hazan, de Santos, que também estudou em Viena.

AD – Uma das maiores influências da sua vida é a grande pianista Guiomar Novaes. Você se lembra de quais peças você a ouviu tocando pela primeira vez ao vivo e da impressão que teve?

NF – Primeira vez que eu ouvi Guiomar foi em 1955, em recital no Theatro Municipal. Os concertos eram às 9 da noite, e eu acordava cedíssimo pra ir pra escola, então vivia com sono nos recitais. Mas eu me lembro da presença dela e me lembro que tocou a Fantasia Cromática e Fuga [de Bach], me lembro do som da Fuga, isso ficou sempre na minha cabeça. Depois que conheci a Guiomar, mais através de discos, e ela estava no júri do concurso [do Rio de Janeiro em 1957], e conhecia de fama, de tudo isso. E nessa época de paixão pelos concertos, eu comecei a querer conhecer todos os concertos. Um deles foi o Concerto de Schumann. Eu comprei o disco com o Concerto de Schumann, e não achei lá essas coisas.

AD – Tocado pela Guiomar?

NF – Não. Por um grande pianista, mas não era a Guiomar. Eu tinha ouvido esse concerto no concurso da OSB alguém tocando e achei muito bonito. Então numa loja, por acaso, tinha o disco da Guiomar, e pedi pra ouvir e foi um choque, era completamente diferente daquilo que eu tinha ouvido. Então comecei a comprar e ouvir todos os discos da Guiomar.

AD – Da [gravadora] Vox.

NF – Sim, que saíam aqui pela Sinter. O 2º [Concerto] de Chopin, Concerto de Mozart, 4º de Beethoven, Sonatas de Chopin.

AD – Os Prelúdios de Debussy [1º caderno]....

NF – Isso saiu depois. Os primeiros foram o Carnaval de Schumann, Fantasia. Do Beethoven No.4 eu só conhecia uma versão que hoje em dia quase ninguém tem, que é a do [Hans] Swarowsky. Eu só conheci a com o [Otto] Klemperer em Viena, foi o primeiro disco que eu ouvi em Viena, eu fiquei fascinado, porque ela toca a cadência de Saint-Säens, que eu conhecia porque quando eu tive que escolher entre o 4º e o 5º [concertos de Beethoven], o 5º eu comprei pelo Horowitz e o 4º foi o Rubinstein, mas numa gravação com o Sir Thomas Beecham, em que ele toca também a cadência de Saint-Säens [ouça trechos neste link].

AD – Que é a cadência que você gosta de tocar.

NF – Eu já toquei também esta cadência. Fiquei fascinado. Achei ela [Guiomar] uma coisa fascinante. Sempre me fascinou. Seria um mistério que ela tem. A D. Lúcia dizia “a Guiomar tem alguma coisa, tem qualquer coisa...”.

AD – Ela tem uma sonoridade diferente, uma musicalidade transcendental.

NF – Não é só a sonoridade, é difícil definir o que é. Ela podia ser muito virtuosa também, nessas gravações tem coisas dela incríveis. Uma espontaneidade, uma coisa que, cada vez que você ouve parece que você está ouvindo pela primeira vez. Mesmo nos discos... Porque acho que ela ao vivo ganhava uns 50%, mas mesmo nos discos [gravados em estúdio] existe essa coisa, quando se ouve de novo. Tem certos pianistas que você acha fantásticos, você ouve uma vez, achou fantástico, ouve a segunda... É igual a voltar a um restaurante em que você come uma comida e já não é a mesma coisa. E a Guiomar não, às vezes até ao contrário até, acontece. Um disco que antes não achava muito bom, vai gostando mais. Tem algum mistério aí.

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Leia a segunda parte da entrevista aqui. Todas as fotos históricas aqui presentes foram gentilmente cedidas por Nelson Freire.

Alexandre Dias e Nelson Freire, após a entrevista