Cartas de Guiomar Novaes (Parte 2)

Neste post publicamos a segunda parte das transcrições das cartas de Guiomar Novaes enviadas a seu ex-professor Luigi Chiaffarelli.

Leia aqui a parte 1 com a explicação introdutória sobre a origem destes documentos

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Correspondência 11 [PDF]

"Paris, 4 de agosto 1911

Muito querido professor!

As saudades que tenho suas são muitas muitas e ainda aumentam mais quando não recebo nenhum cartãozinho!... Há tanto tempo já! Agora estou muito contente de ir conhecer o seu belo país, tão afamado! Partirei daqui no dia 8 de agosto e o meu recital é no dia 11; vou com D. Alda; o senhor sabe que ia com Mme. Chaumont? Pois estava muito contente de ir por ter férias agora, mas foi um pouco tarde, ela precisou partir ontem para a Suisse, do contrário iria com muito prazer, ela gosta tanto de viajar! É uma boa senhora e grande artista Sr. Chiaffarelli!

Eis o meu programa do dia 11: Tendre Nanette,  Couperin – Gavotte, Martini –  Sonata Op.31  nº 2, Beethoven, quando toco-a lembro-me tanto de Lucilla de Mello que a tocava tão bem não é? Noturno em mi [Op.62 No.2] de Chopin (si, sol lá si ré mi do si, ..fá etc.) gosto tanto desse Noturno, o senhor também? Au bord d’une source, Liszt, Chanson du printemps e o Scherzo de Songe [d'une nuit d'été] de Mendelssohn. – Carnaval de Schumann – Minuetto, Zanella, Feux-follets, Philipp – Il Neige, Oswald – Été, Ritter; o senhor gosta do programa? O Sr. Philipp quer que eu toque em piano Bechstein em Turim, pois lá não há Erard, parece! Se me emprestassem o piano da Sala Germania de S. Paulo!.... Pela primeira vez fui a Opera a semana passada, a convite do Sr. Philipp, levaram Samson et Dalila, gostei muito da peça, mas não eram artistas de primeira ordem, pois com esse calor parece dar para desafinar! Como é grandioso o Teatro da Opera! Parece-se uma formiga no meio daquelas escadarias!... O Sr. Philipp gosta muito de dar presentes, até fico com vergonha! Agora cada dia dá-me uma coisa: um álbum de Brahms, uma caixa de “bonbons”, suítes de suas composições, ainda hoje deu-me uma linda gravura da coleção do Louvre, Mme. Récamier; e eu o que tenho para lhe dar? Ele vai partir logo para a Suisse. Que bom que D. Antonietta Rudge vai vir! Também a Paris? O senhor devia vir também! Abraço-lhe com saudades e à D. Guilhermina – Da muito grata Guiomar"

 

Correspondência 12 [PDF]

"Oertlimatt Krattigen, Suisse

8 de setembro 1911

Muito querido professor,

A sua última cartinha causou-me como sempre grande, grande prazer – obrigada Sr. Chiaffarelli! Guardo de Turim saudosa recordação; que bonita cidade! Só sinto ter-me demorado tão pouco tempo! Lá passamos quatro dias. D. Alda teve tanta bondade em acompanhar-me, é sempre tão boa para mim! Guardo também uma boa recordação do Dr. Eugenio Egas, foi muito amável para comigo e achei-o tão engraçado! Já não podia vê-lo que tinha vontade rir-me!

O meu concerto correu muito bem; teria tocado em piano Steinway se já não tivesse no salão de concerto um Schiedmayer – pois a casa Erard tinha-me recomendado para a Casa Chiappo de Turim, pedido um bom piano para o meu concerto; o Sr. Philipp desejava que eu tocasse em um Bechstein ou Steinway. A casa Chiappo pôs à minha disposição um magnífico Steinway mas como eu estava dependendo da Comissão, nada pude fazer mas saí-me muito bem! – Não tem grande povo na Exposição, também fazia tanto calor e parece que muitas pessoas estavam com medo da cólera, mas não há perigo!

O Brasil tem três lindos Pavilhões, quanta riqueza que temos! Minerais, borracha, madeiras preciosas, café então temos de todas as qualidades! O Salão do concerto fica no Pavilhão das festas, é muito bonito mas a acústica é bem sofrível! Tem luz em quantidade e boas decorações. Não tive tempo de ver os de todos os países mas o que vi: França, Bélgica, Argentina, Peru, Uruguai; o primeiro é o da França, sobretudo em modas, que chic!

A exposição está muito bem situada, à beira do Pó, o que dá uma magnífica impressão e à noite com o efeito da iluminação.

Estive com o Sr. [Henrique] Oswald, que boa pessoa! Tão bonzinho não? Foi ao Hotel com sua Senhora, eu devia ter ido à sua casa depois do concerto mas não tive o menor tempo, saí com o Dr. Egas o que levou muito tempo; senti muito e estou com vergonha por não ter ido! – Deram-me 1250 fr. pelo meu concerto – Fiquei encantada com a viagem da Itália à Suíça, que paisagens, que natureza!...

O lugar em que estamos é lindo! Temos perto o glaceiro [geleira] de Jungfrau e à nossa frente o Lago de Thun, a sua cor é de um azul admirável uma verdadeira turquesa – Agradeço muito as felicitações e hoje envio um cartão a cada aluna da aula. Para o Senhor, D. Guilhermina e Liddy mil saudades e um carinhoso abraço da sincera Guiomar.

O Dr. Egas mandou tirar o meu retrato em Turim. Lhe enviarei logo que os receber."

 

Correspondência 13 [PDF]

"Paris, 6 de outubro de 1911

Meu querido professor,

Senti muito saber da sua nova doença mas espero e desejo que isso não lhe aconteça outra vez! Aqui estou desde domingo, onde cheguei de Lausanne e ainda tenho a cabeça virada para a Suíça, - que cantinho maravilhoso aquele! Temos sentido bastante frio, ainda mais que não temos calorífero antes de novembro – sente-se uma falta!

Já fui ver o Sr. Philipp. Antes agradeço-lhe muito, muito, a sua cartinha tão amável da semana passada; não mereço tanta honra em receber sempre cartas suas!

Monsieur Philipp trouxe-me da Alemanha uma interessante cópia de um manuscrito de Beethoven; é perfeito, - os borrões, rabiscos, tudo está impresso; tem dentro também um pedaço da 3ª. parte da Sonata “Ao Luar”. – Que coisa engraçada! Mr. Philipp faz anos também no dia 2 de setembro, que coincidência não?

Sr. Chiaffarelli, D. Alda resolveu para minha irmã Analia vir agora para cá, para andar comigo, de um lado para outro; ela pedirá uma licença para vir e, como mamãe fica sem o seu auxílio, eu tinha muita vontade de vender meu piano que aí está mesmo sem ser tocado e assim, eu ajudaria mamãe um pouco, o senhor não acha bom? Já escrevi à mamãe sobre isso.

O senhor gostou do piano de Paderewski? O senhor acha que os pianos “Erard” são bons no Brasil? Aqui eles são esplêndidos; agora tenho outro que Sr. Philipp escolheu – tem um som celeste!... Mas não sei se no Brasil eles resistem; Mr. Philipp disse-me que a casa Erard me dará um, fabricado expressamente para o Brasil, ou então me dará a soma do piano e assim levarei o que eu quiser, o que acha o senhor?

Coitada de D. Guilhermina! Ainda tem as dores de cabeça? Pensei que estivesse agora completamente boa! É pena!...

Envio muitas lembranças a todos e ao Sr. Olindo também!

Para o senhor, meu querido professor, muitas saudades muitas, da muito agradecida e sincera Guiomar"

 

Correspondência 14 [PDF]

"Paris 10 de outubro de 1911

Muito querido Sr. Chiaffarelli,

Antes de tudo, peço-lhe me desculpar por não ter escrito a semana passada, como tinha lhe prometido mas, eu sou como sempre, insuportável; tenho o mau hábito de fazer o meu correio para o Brasil, justamente no dia da partida que é sexta-feira; de formas que tenho tanto que escrever mas chega a última hora, não tenho tempo para nada! Desde que aqui cheguei, queria acostumar a escrever todos os domingos, mas isso nunca fiz.

Fiquei muito contente de ver D. Antonietta, só senti ser tão pouco tempo, pois só soube de sua estadia em Paris nos últimos dias! Foi tão bonito o programa do seu concerto; gostei de tudo, especialmente de “Jardins sous la pluie” e do Noturno em dó#, que D. Antonietta tocou com tanta sonoridade!... Foi pena não ter ficado mais tempo, não?

Já assisti os primeiros concertos orquestrais; ouvi no “Lamoureux” uma parte de D. João de Mozart; gostei tanto! A serenata foi cantada deliciosamente por Renaud; justamente no dia do centenário de Liszt, ouvi o grande festival no “Concert Colonne”; como pianista, ouvi Paul Goldschmidt na Dança Macabra, de Liszt, tem todas as qualidades, a sua técnica é extra extraordinária! Ouvi também no mesmo dia e pela 1ª. vez, Mme. Félia Litvinne­ na morte de Brünnhilde de Wagner, ... se o senhor aqui estivesse haveria de gostar! – Ouvi noutro concerto uma grande pianista francesa; Mlle. Blanche Selva, que tocou o concerto em fá de Bach, para piano e duas flautas; tocou também a Sinfonia (sobre um canto montanhês francês) de Vincent D’Indy, para piano e orquestra; quando ela toca, parece estar passando a mão num veludo mas, é tão gorda, ... é mais ou menos como Chico Redondo!!!... – Uma coisa que impressionou-me bastante, foi a Suíte em ré menor para orquestra de Haendel; que coisa divina, não Sr. Chiaffarelli?

Ouvi um dia destes o grande Kreisler num recital na Sala Gaveau; estava repleta! Tocou um bonito programa e a maior parte eram músicas antigas: Corelli, Couperin, Martini, Bach, Pugnani, etc. e também Kreisler, ele mesmo!... É admirável! – Domingo vou ouvir pela 2ª. vez a missa de Beethoven no “Concert Colonne”. No dia 16 próximo vou tocar num concerto, da Sociedade “Matinée D´Art”, onde tocam sempre bons artistas; tocarei a Sonata de Mozart em lá maior e quatro estudos de Chopin; que são: em dó# Op.25 nº 7, Op.25 nº 3, Op.10 nº 3, Op.10 nº 5.

Agora comecei a estudar o alemão que gosto tanto mas que é tão difícil não? Vou-lhe contar um pouco a história da minha professora de alemão; é uma austríaca que fez grande parte da sua educação na Inglaterra e vindo depois para a França, naturalizou-se francesa; estudou 8 línguas e fala 5 correntemente, e agora começou a estudar o russo; quanta coisa não? É uma senhora muito interessante e espirituosa!

O Sr. Philipp manda-lhe muitas lembranças e pede-lhe ter a bondade de enviar-lhe programas das suas aulas que muito lhe interessam; ele mostrou-me um dia destes os programas dos concertos históricos, que o senhor enviou-lhe, não os conhecia e fiquei admirada de ver o nome de tanta gente desconhecida!! – Como sei que o senhor é um grande admirador do mestre Saint-Saëns, envio-lhe hoje um seu bonito escrito, sobre a antiga Sala do Conservatório; ele escreveu todos os 15 dias no “L´Echo de Paris”, onde também escreve Massenet – D. Antonietta deu-me uma sua fotografia que causou-me imenso prazer!

Ah!... esqueci-me de dizer que ouvi o Rouet d’Omphale do poema sinfônico de S. Saëns pela orquestra Colonne. Como é lindo! E como lembrei-me das quintas-feiras que tocavam a dois pianos nas aulas!

Envio muitas saudades à D. Guilhermina, Liddy, Sr. Olindo, cumprimento Sr. Cantù, e o senhor queira aceitar um afetuoso abraço e muitas saudades da muito grata Guiomar"

 

Correspondência 15 [PDF]

"Paris, 20.X.11

Meu querido Sr. Chiaffarelli

Muito muito obrigada pelos amáveis cartões!.... semanais!

Já começaram os concertos; domingo fui ao concerto “Lamoreux”, ouvi pela 1ª. vez D. João de Mozart e a 1ª. audição de uma nova sinfonia de Guy Ropartz que muito gostei, logo logo vou lhe escrever uma longa carta.

Muitas saudades, agradecimentos e um afetuoso abraço da Guiomar"

 

Correspondência 16 [PDF]

"Paris, 27.10.11

Meu querido Sr. Chiaffarelli,

Já vi D. Antonietta e assisti o seu concerto no dia 23, fiquei muito contente! Hoje não tenho tempo mas para a semana vai uma longuíssima carta!

Mil saudades de Guiomar"

 

Correspondência 17 [PDF]

"Paris, 29.II.12

Meu querido Sr. Chiaffarelli – Acabo neste momento de receber seu cartão de felicitações pelo meu aniversário, mil vezes obrigada! Gostei muito da fotografia. Como todos estão diferentes!

No próximo domingo 3 de março, toco no Concert Colonne; é esta a grande novidade, que bom não? Eu estou tão contente que nem sei como agradecer a Deus! Foi Th. Dubois e Vidal quem pediram a Mr. Pierné, Mr. Philipp também já tinha falado nisso; Dubois esteve no concerto de 11 de fev. e veio felicitar-me quando acabei de tocar o Concerto de Mozart em ré m., tocarei o mesmo domingo.

Só hoje é que será o concerto do filho da Chi. [Chico] Redondo.

Toquei no dia 16 na “Trompette”, uma boa sociedade onde tocam sempre grandes artistas – agora são pedidos de todos os lados, só no mês de março tocarei 9 vezes, é demais não? O meu concerto ­­está marcado para o dia 30 de março e nada está ainda estudado. O meu concerto em Londres está marcado para o dia 21 de maio.

Mil e mil saudades e um abraço da sincera Guio

 

Correspondência 18 [PDF]

"Londres, 22 de maio 1912

Meu bom e querido Sr. Chiaffarelli

Ontem foi o meu 1º Concerto em Londres; vim com uma grande amiga de Mr. Philipp, Mlle. Herrenschmidt, uma distinta senhora que teve durante 20 anos um colégio para estrangeiras em Paris – uma distinta família inglesa de sua amizade, convidou-nos para ficar em sua casa, quando soube que devia vir a Londres com Mlle. Herrenschmidt; essa é uma senhora inteligentíssima e fala três ou quatro línguas como o francês, e conhece Londres tão bem como Paris. – O meu empresário Miss [sic] Robinson estava já prevenido para arranjar o meu concerto, mandei-lhe retratos e todas as críticas que tenho tido em Paris; trouxe cartas de recomendações de Widor, Moszkowski, Mr. Philipp e da Princesa Isabel, Mme. Ephrussi etc.

Há 8 dias quando cheguei, tudo estava ainda frio (primeiro devo contar-lhe que D. Alda comprou ultimamente em Paris um excelente Bechstein de meia cauda, já a casa Bechstein em Paris, isto é, o gerente, foi muito amável e reduziu o preço quando soube que era para mim; (Mr. Philipp e Mme. Chaumont ficaram um pouco enciumados de ver o meu entusiasmo para essa marca); no dia que cheguei em Londres recebi um telegrama, da casa Bechstein de Paris, dizendo-me que eu procurasse o representante em Londres. Mr. Lindlau, para um excelente piano para o meu concerto; e assim fiz, escolhi um admirável desses instrumentos. Mas não conhecendo nada em Londres e a com a concorrência de artistas agora, nem pensava ter nada de sucesso! Mr. Best veio me procurar e foi tão amável, em querer fazer um pouco de reclame, mas ele dizia-me: admiro a sua coragem de vir dar concerto em Londres, tem tanta coisa agora!

Mas eu muito calma: não faz mal, é bom para experimentar; distribuí todas as cartas que tinha, a família Me. Indyre onde estamos hospedados, que tem muitas relações em Londres distribuiu programas para os conhecidos, e com o reclame dos jornais, tive uma sala cheia, com 500 pessoas, mais ou menos; havia muitos artistas e críticos, o empresário fez de propósito, porque 1º concerto é tão difícil! E ainda mais em Londres!! Mas meu querido Sr. Chiaffarelli, digo-lhe com toda franqueza, que nunca toquei tão bem como ontem, graças a Deus! Dez vezes melhor que meu último concerto em Paris; tive um sucesso que não esperava nem a quarta parte; fui muito aplaudida e recebi no palco (imagina o senhor!) 2 cestas de flores, uma de Dr. Regis d’Oliveira, que foi de uma amabilidade! E outra da família Me. Indyre, um bouquet de Mr. Best, outro de uma brasileira que mora em Paris, uma cesta de um brasileiro Sr. Tobias Monteiro e uma compositora inglesa ofereceu-me um álbum de suas composições.

Que fim levou o Sr. [Mayn?]? O Miecio [Horszowski] acha que eu toco demais em concertos, que isso cansa muito e eu devia estudar mais sossegada. Todas as vezes que toco o Carnaval é um sucesso. Todos acham que eu interpreto muito bem e quando penso que o senhor explicou-me tão bem tudo no Brasil, sou-lhe tão grata.

De quem muito o estima Guiomar.

Li um livro de Mendelssohn por Hiller, lindo, o senhor conhece? Como Mendelssohn era bom não? Como inglês gosta de Mendelssohn.

Lembro-me muito de D. Guilhermina, pois aqui tem 2 cachorros, um lindo gato preto e um papagaio do Rio de Janeiro. D. Guilhermina que gosta tanto dos animais!

Envio mil afetuosos abraços e saudades ao senhor, D. Guilhermina e à querida Liddy – Cumprimento Sr. Cantù.

Agora me convidam para todos os lados, recepções, chás, almoços, etc. mas eu prefiro brincar com dois cachorrinhos muito inteligentes aqui de casa. Hoje toquei para alguns artistas numas pequenas salas.

Adeus Sr. Chiaffarelli!"

 

Correspondência 19 [PDF]

Londres s/d – 45 Prince’s Gardens

Maio ou junho de 1912 (provavelmente entre 22/05/1912 e 4/6/1912)

[A primeira página da carta está faltando]

"(...) Sr. Chiaffarelli, como as coisas mudam nesse mundo: M. Philipp não queria convencer-se com o método Dalcroze e com a gymnastique rythmique, não é? Pois agora, depois que o senhor escreveu-lhe, ele foi procurar o tal professor em Paris e achou a coisa esplêndida, e um médico muito seu amigo diz que faz muito bem para a saúde; depois disso M. Philipp já mandou 3 discípulas tomarem lições e eu começarei logo que chegar a Paris... que coisa engraçada não? Esqueci-me de contar-lhe do fiasco do concerto do filho de Chico Redondo; imagina o senhor que ele pôs os [bilhetes] a 20 frs; quando eu cheguei ao concerto, ele estava muito perturbado porque estavam reclamando a sala, e ele ainda não tinha pago e seu acompanhador tinha quebrado a cabeça num desastre na montanha [ficando impedido de] de vir ao concerto; eram 10h da noite e nada de começar; de repente começaram a apagar as luzes, eu fiquei com tanta pena e tive que acompanhá-lo todo o concerto à 1ª vista, que horror!! Tão mal e no fim ainda toquei o Hino Nacional mas ele cantava músicas muito ordinárias e o público só portugueses; M. Philipp ficou furioso quando soube depois, mas o cunhado de D. Alda, Sr. Leovigildo Prado, deu-me 300 frs. como recompensa, pois foi ele quem pediu-me para tomar parte – Envio-lhe a 1ª crítica do meu concerto daqui, para a semana lhe enviarei as outras. Fiquei triste em saber que D. Guilhermina sofre ainda das dores de cabeça, peço a Deus pela sua saúde.

O senhor não repare no programa, “of Paris”, pois foi o empresário, eu nem sabia, que cousa não? Eu nasci francesa!!! E toquei por bis o estudo de Chopin das teclas pretas; M. Philipp quis muito vir assistir ao concerto mas ele tem tanto que fazer! Depois do concerto recebi um seu telegrama desejando-me felicidades no concerto; quando acabei muitas pessoas vieram cumprimentar-me; uns falavam português, outros francês, espanhol e inglês.... e quantas perguntas ao mesmo tempo; convites para almoço, chás, exposições etc. etc. estava confundida! Na casa em que estamos, nada nos falta, tem 3 moças muito boazinhas que foram discípulas de Mlle. Herrenschmidt e temos dois automóveis à nossa disposição. Esqueci-me de contar-lhe que toquei para Sauer ultimamente em Paris, ele recomendou-me também em Londres e escreveu umas bonitas linhas no meu álbum, que deu-me M. Philipp; já tenho de alguns artistas mas a primeira página guardo para meu querido Sr. Chiaffarelli escrever, quando voltar ao Brasil; Sauer foi muito amável e disse-me que quando eu for à Viena ele fará tudo por mim; toquei também para o diretor do Conservatório de Genebra, em casa de M. Philipp, mas naquele dia toquei tão mal!! - Estive com o diretor da Sala Bechstein aqui em Londres, ele falou-me com entusiasmo de D. Antonietta e manda-lhe muitas lembranças. Eu devo tocar no dia 28 de outubro na Sala Bechstein em Berlim, que ponta não?!?! - Tenho gostado extraordinariamente de Londres e dos ingleses, que gente boa não? - O Miécio está sempre em Paris estudando composição, não quer tocar em concertos agora, toca também clavecin, cada vez mais admirável e toca Bach de uma maneira genial!!

O senhor diz-me também para guardar o meu dinheirinho mas em Paris cada passo, é um vintém! – Principalmente agora que minha irmã chegou, D. Alda tomou um pequeno “appartement” em frente ao seu, e tomamos por hora, uma criada para a limpeza, e fazer o almoço e jantar; e antes disso, tinha sempre muita despesa em Paris, mas faço o possível para não gastar muito.

Sinto muito não poder ir ao Brasil em outubro, pois já assinei o contrato desses concertos! – O meu empresário aqui dizem ser bom mas a sua senhora é mais inteligente que o marido e isso lhe ajuda muito! Eles se interessam muito por mim; dou-me com Mme. O’Neill, uma velha conhecida de M. Philipp, boa pianista e senhora dum bom compositor inglês para o teatro; é uma boa senhora e muito interessante; ela quem apresentou-me a Wood e à Fanny Davies, a distinta pianista, que o senhor deve conhecer de nome; ela foi discípula de Clara Schumann (Mme. O’Neill também) a ouvi pela 1ª. vez num concerto com Casals, na última semana, e no dia seguinte fui almoçar em sua casa; que domingo agradável que passamos! Só se falava em música, F. Davies nos tocou tantas músicas de Bach, ... e com que perfeição! O seu modo de tocar é profundo e aveludado, o seu Bach é nobre e simples; ela tem também um clavecin, e que boa pessoa! Aqui chamam-na “o coração de ouro”; tão simples, amável e cheia de vida; e quando se entusiasma, começa a assobiar ou então levanta-se e começa a dançar com um só pé, .... ri-me tanto!

Pela 1ª vez assisti a um bailado russo, que beleza!!! Vi dançar mazurcas e valsas de  Chopin, entre essas, a Valsa em dó#, fiquei comovida! Ouvi também o Carnaval de Schumann, como é interessante! Tinha uma peça moderna “L’oiseau de feu”, música de Stravinsky, muito curiosa e imitativa. Acabei de ler hoje Beethoven, [por] Rolland, gostei muito, como ele sofreu!! É muito bem escrito e fácil de compreender; foi Mme. [Stoup], onde [fui] tocar no dia 27, quem deu-me; essa senhora tem uma alma de artista!... São entusiastas e nos salons pagam o dobro de Paris; o senhor diz-me para não tocar de graça; em Paris os franceses e americanos, onde tenho tocado, foram sempre generosos mas os brasileiros não são muito, em duas casas brasileiras que toquei deram-me 50 frs. e nas outras recebi 200 ou 300 frs. como tenho lhe escrito; e agora uma amiga de Mme. Jullien já pede-me para ir à sua casa e me dará 300 frs., mas não sei quando; são sempre muito corretas essas senhoras, quando pedem para eu tocar, sempre perguntam antes, qual o meu preço, assim que deve ser, o senhor não acha?

Termino enviando mil saudades e abraços à D. Guilhermina, Liddy e todos os conhecidos; cumprimento Sr. Cantú, mil agradecimentos e saudades sem conta da sempre Guiomar."

Correspondência 20 [PDF]

"4.6.12
 
Meu querido Sr. Chiaffarelli

Tenho tocado diversas vezes em Londres.

F. [Fanny] Davies enviou-me as 38 [32] sonatas de Beethoven na edição original – ela conta com tanta graça anedotas de Clara Schumann, [Anton] Rubinstein e Joachim que conheceu tão bem. O Grande Duque Miguel da Rússia deu-me um pendentif [pingente] muito bonitinho em esmalte, tenho ganho outros broches e pulseira. Ontem toquei em casa de Lady Speyer, nunca vi uma casa tão linda como a sua, até órgão tem! Parece um templo! Também nunca vi tanta pérola e diamantes, que aristocracia e grandeza que há em Londres não? Visitei o Museu British e vi manuscritos de Bach, Mozart, Haydn etc. etc.

Mil saudades e afetuosos abraços da Guiomar"

 

Correspondência 21 [PDF]

"Londres, 23/06/12

Meu bom e querido Sr. Chiaffarelli

Peço-lhe desculpar-me do meu longo silêncio mas tem sido tanta correria ultimamente! Muito obrigada Sr. Chiaffarelli pela gentil caixa de doces brasileiros, estavam excelentes e a cada um pensava no meu querido professor! Fiquei muito contente em ver minha irmã Analia pois há tanto tempo que não via uma pessoa de minha família!

Estou de novo em Londres onde vim tocar em casa de Mme. Goetz (uma distinta senhora que foi ao meu concerto aqui, tem uma voz belíssima e é considerada em Londres como grande artista mas amadora), na sua recepção no dia 24 deste e devia partir para Paris dois dias depois, mas três senhoras que estavam em casa de Mme. Goetz pediram-me para tocar em suas casas nos dias: 25, 27 e 3 de julho; uma dessas senhoras é a célebre violinista de Londres, Lady Speyer, que hoje não toca mais em concertos, Mme. Goetz também.

Essa última deu-me 28 libras e cada uma dos outros dias me deram 25£ e Lady Speyer 30£; como o senhor vê valeu a pena eu ter ficado, pois essas senhoras recebem o que há de mais fino e artístico de Londres;  a família Me. Indyre sempre muito amável, quer que eu fique sempre aqui. Tenho estado com um bom meio artístico de Londres: Henry Wood; P. [Percy] Grainger, Fanny Davies, O´Neill, Dora Breicht etc.; como tive um bom sucesso no meu concerto e boas críticas, H. Wood marcou um dia do mês de outubro, 16, para eu tocar com a sua orquestra no Queen’s Hall, o concerto em ré menor de Mozart; tocarei também no dia 15 no concerto da cantora Clara Butt que tem sempre um excelente público e darei outro concerto no dia 22 de outubro; como tenho que passar um mês aqui em Londres, o meu concerto em Berlim ficou para o dia 3 de março de 1913 – Eu tenho sido muito feliz aqui e Mr. Philipp acha que eu farei uma bonita carreira em Londres; no meu concerto fiz 450 frs. o que toda gente achou esplêndido para um 1º. concerto, mas as despesas parecem ser mais (eu não tenho bem certeza) as inglesas.

D. Alda sempre muito boa para mim, mas tem estado sempre com bronquite ultimamente; assisti ao último concerto de Magdalena [Tagliaferro] em Paris. Gostei muito, ela tocou tudo tão bem e teve um grande sucesso, o de Bellah não pude infelizmente assisti-lo, o que muito senti.

Um afetuoso abraço

Guiomar"