Antonio Vaz Lemes fala sobre seu novo CD "Sonata Brasileira"

Em entrevista para o IPB, o pianista Antonio Vaz Lemes conversou com Alexandre Dias sobre seu novo CD "Sonata Brasileira" (que pode ser adquirido através do Itunes e Amazon), e também sobre sua carreira, e referências pianísticas sua vida. Confiram!

Alexandre Dias: Durante seus anos de formação, você passou por três instituições: o Conservatório de Tatuí, o Instituto de Artes da Unesp, e a EMESP Tom Jobim. Pode nos falar um pouco sobre esta época?

Antonio Vaz Lemes: Acreditei por muito tempo que seria um pianista ambivalente, clássico e popular ao mesmo tempo. Tatuí e a Unesp me formaram no repertorio clássico e a Emesp no popular. Graças a esta formação múltipla, me senti seguro para trabalhar na Alemanha, tocando em um Dinner Show com o cantor Edson Cordeiro. Lá tocávamos desde os standards de Jazz, MPB, como música clássica. Acontece que eu não percebia em mim o mesmo prazer, a mesma energia criativa, que os meus companheiros de banda apresentavam ao improvisar. Para o pianista popular, de longe, o barato está no improviso. Já de volta ao Brasil, depois de mais de 100 shows em Munique, tive certeza da minha natureza inclinada ao repertório clássico. Eram aqueles textos que eu queria contar. Eram neles que eu reconhecia minha “voz”. Hoje também me mantenho na musica popular, mas produzindo música eletrônica.

Destas escolas, guardo no meu coração ensinamentos de grandes professores como Peter Dauelsberg (música de câmara), Celinha Carmona (piano popular), Claudio Leal (harmonia) e de uma forte impressão que a pianista Cristiane Blóes (coordenadora da área de piano do Conservatório de Tatuí, e premiada no Prêmio Eldorado) me causou. Ela me inspirou prosseguir com o piano na Universidade. Durante a Universidade, conheci Nahim Marun, e em Campos do Jordão, Gilberto Tinetti.

AD: Depois você estudou na França com Noël Lee, frequentando o Conservatoire Américain de Fontainebleau (onde ensinaram grandes mestres, como Robert Casadesus) e a Académie Francis Poulenc, e teve masterclasses com Phillipe Entremont, Alicia de Larrocha, Jean-Phillipe Collard, e Christian Ivaldi. Pode nos dizer algumas particularidades que aprendeu comestes professores, que lhe marcaram, seja de ordem técnica ou interpretativa?

AVL: Para Alicia de Larrocha, toquei a Sonata Op.111 de Beethoven em Campos do Jordão, durante o Festival de Inverno. Uma grande emoção. Phillipe Entremont, além de me incentivar sinceramente, me acompanhou no Concerto para a mão esquerda de Ravel, em um recital a 2 pianos em Fontainebleau. Foi quem me deixou mais confiante que nunca, sobre minha capacidade de interpretar aquele concerto, tão especial.

Trabalhei com Ivaldi por duas temporadas, ambas na Académie Francis Poulenc, a última em 2015. Além do repertório camerístico, também tive chance de trabalhar solos (Fauré, em especial). Devo a ele a percepção de que é possível (melhor, recomendável) ser capaz de desconstruir convicções, especialmente aquelas que se mostrem “imaculadas”, já que em arte, tudo pode ser mutável, flexível. “La souplesse!”.

Mas de todos estes professores, o que me me acompanhou por mais tempo foi Nöel Lee. Estudei com ele em Fontainebleau, mas também particularmente, durante o período em que trabalhei na Alemanha. Tive a chance de trabalhar, entre outras obras, a Kreisleriana de Schumann, a Sonatina de Ravel, Polonaise-Fantaisie de Chopin, e até mesmo a Sonata do Guarnieri, que o impressionou muito!  Dele ficaram os exemplos de extrema elegância, precisão, e bom gosto, mas acima de tudo, do sentido de pulso. Talvez por seu berço musical norte-americano ele cobrasse tanto clareza deste sentido. desta noção. Podemos ouvir claramente este traço pessoal em suas centenas de gravações. Participei de uma homenagem feita a ele, com a soprano Valérie Condolucci, em Tours.

AD: O seu mestrado na UNESP foi sobre o tema "Dedilhado pianístico e suas relações com princípios técnicos e musicais”. Vários pianistas já disseram que o dedilhado é uma arte, que requer muito estudo e criatividade (o russo Vladimir De Pachmann chegava ao ponto de encobrir suas mãos com o corpo durante um recital, para que seus dedilhados não fossem vistos por colegas pianistas na plateia). A quais conclusões você chegou durante a pesquisa? Há algum dedilhado específico de alguma peça que julgue representativo para compartilhar conosco?

AVL: É sem dúvida uma arte! Minha pesquisa analisou 25 fontes sobre dedilhado, entre livros, partituras e tratados. Todas oferecem visões interessantes e enriquecedoras sobre o assunto. Mas talvez a mais sintética e prática, venha do pianista russo Heinrich Neuhaus. Para ele, 3 princípios devem orientar o pianista, hierarquicamente, na escolha dos dedilhados: 1 - Sentido musical, 2 - Ergonomia das mãos, 3 - Compatibilidade com as particularidades individuais de cada mão. Gosto muito deste ponto de vista e o utilizo muito com meus alunos, procurando colocar o sentido musical em primeiro plano, antes de apelar a adaptações. Em busca do sentido musical, aprofundamos nosso conhecimento em todos os aspectos musicais. O universo do dedilhado é assunto ultra-didático, rende ótimas reflexões! Em minha pesquisa, encontram-se vários exemplos interessantes em dedilhados. A partir daí, vou colhendo e classificando princípios técnicos e musicais, que parecem ter orientado as escolhas de pianistas, compositores e revisores. Ao final, ainda discuto a aplicação destes princípios na Sonata Op.78 de Beethoven. Nahim Marun, meu orientador, foi um grande mestre. (clique aqui para baixar a dissertação de Antonio Vaz Lemes).

AD: Em 2014, você lançou o app Sonata Brasileira (IOS, Android), para smartphones e tablets, contendo suas gravações de quatro sonatas brasileiras, duas delas encomendadas por você. Como foi feita a escolha do repertório?

AVL: Eram 5, na verdade. O projeto ainda incluía a Sonata Breve do Marlos Nobre, que já me rendeu vários prêmios em concursos de piano. Mas, como tantos outros intérpretes, infelizmente não consegui acordo de direito autoral. Pensava num disco contemporâneo, mas que contasse com obras de compositores consagrados. Sobre estes, primeiro pensei na sonata do Francisco Mignone, dedicada à Magda Tagliaferro, mas logo vi que o Eduardo Monteiro já tinha feito uma gravação excelente. Continuei a pesquisa, em busca de algo pouco conhecido e grande valor musical. Foi quando me deparei com a Sonata do Guarnieri. Conhecia algumas Sonatinas, mas nunca tinha ouvido falar de uma sonata, e com dificuldade, encontrei gravação. Preferi não ouvir de cara, e comecei a decifrá-la. Na época, comentava com meus amigos que estava criando um monstro em casa, dada a natureza dissonante da obra. A 1ª Sonata do Villani-[Côrtes] já fazia parte do meu repertório, sempre adorei tocar, me identificando muito com seu espírito afetuoso. Faltava algo realmente novo, por isso encomendei ao grande [André] Mehmari (que acabou me dedicando sua Sonata em Lá) e ao meu amigo Marcelo Amazonas, compositor de grande sensibilidade, essas duas pérolas. Me lembro do entusiasmo do Nahim Marun e do Gilberto Tinetti pela substância musical das duas Sonatas.

AD: Agora você está lançando estas gravações pela primeira vez em CD. Onde ele pode ser encontrado e como pode ser comprado?

AVL: Conheci o John Anderson, dono da Odradek Records em Viena, na Classical Next, a maior feira sobre a indústria de música clássica do mundo. Na ocasião, estava apresentando o álbum-aplicativo Sonata Brasileira (uma verdadeira novidade dentro da feira).  Ficamos em contato, fiz consultoria para a Odradek a respeito de um eventual App para o selo. Depois decidimos ampliar a distribuição do Sonata Brasileira em formato CD. A Odradek Records é especial por representar 33 artistas de 19 países, que democraticamente escolhem  e validam a entrada de novos artistas. Sou o segundo brasileiro, o primeiro é o sensacional Ronaldo Rolim, com seu Trio Appasionata. Não poderia estar mais feliz!

(Acesse aqui a página do Sonata Brasileira no facebook).

AD: O app teve uma boa divulgação na imprensa na época. Como tem sido a receptividade com público? Pianistas têm lhe contactado?

AVL: Não só pianistas, músicos em geral ficaram com a idéia na cabeça, e vieram conversar comigo. Acabei desenvolvendo até uma habilidade divertida de imaginar e projetar um tipo de App para cada músico que me procurou, procurando interatividade no argumento proposto por cada artista. O App virou  matéria exclusiva na revista Veja (Sergio Martins), foi capa do Caderno 2 do Estadão (num domingo!), na TV, foi pauta na GloboNews, no programa Em Pauta (Jorge Pontual, direto de Nova Iorque), Navegador (Hermano Viana), programa Metrópolis (TV Cultura), Para Todos (TV Brasil), sem contar o Pianíssimo da Radio Cultura, que me entrevistou durante a exibição das Sonatas. Até o pianista e musicólogo Luca Chiantore mencionou o App num artigo de uma revista espanhola.

AD: Você fez as gravações de madrugada em uma igreja em Paris, em um piano Fazioli considerado por vários o melhor piano do mundo. Como foi sua experiência gravando neste piano? A igreja foi escolhida em função de sua acústica?

AVL: A equipe que me gravou (Little Tribecca) produz regularmente para a Harmonia Mundi. Eles já conheciam a igreja, a acústica, onde colocar os mics, portanto me senti muito seguro com relação ao resultado final da captação. A escolha do piano foi muito bacana, pois tive 3 Steinways D e o Fazioli para decidir. Já conhecemos bem a Steinway, e me deparei com pianos excelentes. Reconhecia meu som neles. Ao tocar no Fazioli, percebi que as respostas sonoras eram diferentes das que eu estava acostumado a produzir. Pensei que esse era uma razão interessante para a escolha deste piano. Assim, poderia contar também com o fator surpresa.

AD: A forma Sonata tem sido explorada por compositores brasileiros desde o século XIX até hoje. Como você vê a evolução das sonatas dentro do panorama brasileiro?

AVL: Nem precisamos lamentar do Villa-Lobos não ter se interessado - o Brasil tem uma produção interessante e volumosa de Sonatas! De Nepomuceno a Arrigo Barnabé! (gravado recentemente pela ótima Karin Fernandes). Citando algumas, merecem atenção e divulgação as de Guerra-Peixe, as do Almeida Prado (compositor que lamento não ter abordado no álbum), Claudio Santoro, a Sonata- Fantasia da Lina Pires de Campos, as do Osvaldo Lacerda, Radamés Gnattali, sem contar as Sonatinas do José Siqueira.

AD: Quais são os pianistas (brasileiros e estrangeiros) que mais lhe influenciaram? Pode nomear algumas gravações especificas que lhe marcaram?

AVL: Gilberto Tinetti, hoje mais meu amigo que professor, permanece como meu norte em termos de dignidade artística, diplomacia e repertório. Digo repertório, porque atualmente tendemos a cultuar o profissional com “especialidade” , em repertório ou formação. Ele é um dos raros pianistas que se mantém vivaz produzindo sem cessar como solista sinfônico (novembro passado solou, em uma mesma tarde, 4 concertos diferentes na Sala São Paulo), camerista, e colaborador de repertório vocal. Poder transitar por todos estes repertórios é sem dúvida uma conquista, um exemplo artístico e profissional.

Magda Tagliaferro. Penso em seu pianismo soberbo, claro. Aliando ao talento, a proximidade que teve de Fauré, fica para mim como uma espécie de criatura mitológica. É uma artista que gostaria muito de ter conhecido.

Admiro muito os nossos jovens pianistas! Seguem me inspirando Fabio Martino, Leonardo Hilsdorf, Erika Ribeiro, Sylvia Thereza, John Blanch (que tornou-se também um ótimo produtor!), Ronaldo Rolim, Juliana D’Agostini, Pablo Rossi, Lucas Thomazinho, Lucas Gonçalves, Paulo Henrique Almeida. Sem contar meus colegas do Pianosofia (Marcos Aragoni, Yuri Pingo e Vagner Ferreira), mas certamente em especial, nosso orgulho, Cristian Budu.

AD: Como você vê o papel do pianista no século XXI? O que há para ser explorado?

AVL: A interatividade é nosso desafio. Não vejo como continuar reafirmando a relevância de nossa arte sem nos aproximarmos realmente do público, seja via tecnologia ou social. O álbum-aplicativo foi uma experiência bem sucedida no sentido digital. E o Pianosofia, só tem me dado alegrias. Nunca senti tanta proximidade com o público e nunca pude perceber o quanto podemos e fazemos a diferença na vida das pessoas. É um projeto que não pode parar de se espalhar, crescer e agregar. Estamos trabalhando para isso.

AD: Qual o seu próximo projeto? Há planos para mais apps e CDs?

AVL: Talvez nenhum dos dois. Mas sim, definitivamente, usando tecnologia. Devo abordar, finalmente, Fauré, compositor que adoro, em um álbum. A plataforma... isso é surpresa!

AD: Obrigado pela entrevista!

[Depois pedimos que Antonio Vaz Lemes indicasse gravações de pianistas que lhe marcaram, e esta é a lista que nos forneceu]

Brahms - Piano concerto No 2 (Pollini, Abbado WPO)

Egberto Gismonti - Baião Malandro

Ravel - Trio (Richter, Kagan & Gutman)

Samba Dobrado, por Cesar Camargo Mariano e Romero Lubambo

Prokofieff - Sonata para piano n°8 (Richter)

Gabriel Fauré - L'horizon chimérique (Gérard Souzay et Jacqueline Bonneau)

Chopin "Polonaise-Fantaisie" em Lá bemol Op.61 (Magda Tagliaferro)